Tatiana Nicz

Anne with an “E”, defletindo para sobreviver

“Deflexão é uma manobra para evitar o contato direto com outra pessoa ou conflito; uma forma de tirar o calor do contato real. Isso é feito ao se falar em rodeios, usar linguagem excessiva, rir-se do que a outra pessoa diz, desviar o olhar de quem fala, ser subjetivo em vez de específico, não ir direto ao ponto, ser polido em vez de falar diretamente, usar linguagem estereotipada em vez de uma fala original, exprimir emoções brandas em vez das emoções intensas; falar sobre o passado quando o presente é mais relevante. A pessoa que deflete, ao responder à outra age quase como se tivesse um escudo invisível, muitas vezes experiencia a si mesma como imóvel, entediada, confusa, vazia, cínica, não-amada, sem importância e deslocada.” (Erving e Miriam Polster, 2001).

Baseada no clássico “Anne of Green Gables” da escritora canadense L. M. Montgomery, a série da Netflix “Anne with an E” conta a história de Anne Shirley, uma menina órfã aos três meses que desde cedo trabalha duro para sobreviver. Os olhos azuis e vívidos da jovem Anne escondem o peso de uma curta existência, porém carregada de complexidade emocional e traumas.

A história começa quando os irmãos Marilla e Matthew Cuthbert resolvem adotar um menino com braços fortes e ágeis para ajudar na lida diária do campo, Matthew surpreende-se ao encontrar uma menina aguardando por ele na estação de trem. O primeiro encontro da garota com os novos pais adotivos é pautado por decepção, frustração e rejeição. A menina Anne é miúda e desajeitada, tem imaginação viva e fala incessante. Dentro de uma tipologia gestáltica, pode-se dizer que Anne é deflexiva.

Embora não seja próprio do espírito gestáltico falar em tipologia, Fritz Perls e outros gestaltistas descreveram alguns “modos operantes” utilizados para evitação de contato com o outro, com o meio ou com situações de conflitos emocionais. Os gestaltistas chamaram estes modos de se relacionar de “Mecanismos de Evitação do Contato” ou “Mecanismos de Defesa”.

Os mecanismos de evitação de contato são recursos que desenvolvemos desde muito cedo, primeiramente como forma de ajustamento e sobrevivência ao modo (muitas vezes disfuncional) como nosso sistema familiar está organizado; posteriormente repetimos os mesmos padrões em outros círculos relacionais. Todos nós alternamos entre os diferentes mecanismos, de acordo com dada situação ou conflito, por isso não se deve “engessar” alguém em um determinado mecanismo. Porém, fala-se em prevalências, que moldam nosso funcionamento e personalidade.

A menina Anne é muito jovem e desde cedo vive desamparada em orfanatos e trabalhando em casa de terceiros. Por diversas vezes foi rejeitada, maltratada, agredida, experienciou traumas psicológicos e físicos que com pouca idade não possuía recursos emocionais para “processar”. Ela se utiliza da fala excessiva e da imaginação para criar ambientes mais leves; assim tira o calor das relações e evita contato com a realidade dos fatos, com o peso e a dor que eles trazem. A fim de sobreviver com tão pouca idade em um mundo tão emocionalmente complexo e caótico, Anne deflete.

A deflexão é o mecanismo de evitação que se utiliza do desvio do contato direto ou da energia do objeto de desejo. A pessoa deflexiva nunca adere à situação, sempre falando de outras coisas, fala muito e ao mesmo tempo não diz nada.

É importante ressaltar que todos os mecanismos são funcionais quando utilizados de maneira adequada. Defletir é um ótimo recurso em situações que requerem contatos superficiais, polidez e diplomacia. Também é um recurso muito utilizado na arte e na escrita, tornando as palavras mais ricas e floreadas. As pessoas com prevalência de funcionamento deflexivo, por terem dificuldade de fixação em uma só coisa ou pessoa, são curiosas, criativas e têm conhecimento de assuntos variados.

Os mecanismos de evitação de contato tornam-se neuróticos quando utilizados em situações que requerem novas maneiras de lidar com conflitos, ou seja, quando se tornam anacrônicos. Defletir é inadequado quando precisamos ser objetivos, assertivos, ao falarmos de nós, quando se faz necessário silenciar e entrar em contato com nossas dores e frustrações. Defletir não nos ajuda quando temos que focar ou aprofundar em algo e, principalmente, quando desejamos criar intimidade e vínculo emocional legítimo e duradouro com o outro.

O exercício para pessoas que defletem é aprender a falar assertiva e objetivamente, manter foco e atenção em algo ou alguém, fazer e manter contato visual ao falar, escutar e, claro, silenciar.

“Anne with an E” é uma história sobre reconstrução, novos aprendizados e oportunidades, e também sobre deixar velhos padrões (deflexivos) de comportamentos. A menina Anne precisa reinventar-se, aprender a permanecer e criar vínculos e recontar sua historia. A série não acerta sempre, mas me surpreendeu em conteúdo, produção e fotografia. A narrativa, apesar de complexa em conteúdo emocional, se desenvolve de forma leve e divertida. Assistir “Anne With an E” requer ainda contextualização histórica de uma época onde não existia infância e as crianças eram tratadas como “mini-adultos”. Para os chorões como eu, sugiro manter uma caixa de lenços por perto.

Imagem de capa: Reprodução

Tatiana Nicz

Libriana com ascendente em Touro. Católica com ascendente em Buda. Amo a natureza e as viagens. Eterna curiosa. Educadora e contadora de histórias. Divagadora de todas as horas. Escrevo nas horas vagas para aliviar cargas, compartilhar experiências e dormir bem. "Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia." Guimarães Rosa

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