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Ninguém está imune a ela, mas todo mundo finge estar. Entra ano e sai ano e a inveja, o mais inconfessável dos pecados capitais, ainda tira a paz e o sono de muita gente.
A inveja é um impulso primordialmente destrutivo, pois é normalmente acompanhada por um desejo de aniquilação, de sofrimento e nunca é construtiva.
Quem explica é a psicóloga e psicanalista Heloisa Antiori. Para ela, a inveja elimina a admiração. “Quando admiramos alguém temos a possibilidade de nos identificarmos com ela e desejar ser igual… ou em parte igual. A inveja quer destruir, fazer o outro virar pó e não reproduzir”, diz, antes de comentar que é comum ao invejoso sentir-se injustiçado pela vida, ao acreditar que o outro tem o que tem “por sorte e privilégio, não por esforço”.
Inveja é não querer que o outro tenha. Pelo menos é assim que a maioria dos especialistas estudados e ouvidos a definem.
A grande teórica do assunto é a psicanalista Melanie Klein (1882-1960), aluna e discípula de Freud que se dedicou já na década de 20 a estudar a psicanálise infantil. Seu livro “Inveja e Gratidão”, lançado na década de 50, é até hoje um marco.
Klein argumenta que a inveja está presente já na primeira infância, quando a criança inveja o seio da sua progenitora, o poder de dar e de negar alimento. Nesse contexto, a inveja surge logo que o recém-nascido percebe-se impotente perante a mãe. Ou seja, praticamente nascemos invejosos.
Foi a partir dessa publicação pioneira que a inveja passou a ocupar maior espaço na discussão científica, passando a despertar cada vez mais interesse como objeto de estudo e possibilitando discussões mais amplas e aprofundadas.
O INFERNO DOS OUTROS
O escritor e jornalista Zuenir Ventura investiu alguns anos de sua vida pesquisando sobre o tema e o resultado pode ser visto no ótimo livro “Inveja: Mal Secreto” (Objetiva, 1998), onde investiga o seu funcionamento no cotidiano, expondo casos interessantes, contados por gente de diversas áreas.
O livro de Zuenir traz dados interessantes. Segundo uma pesquisa feita pelo Ibope, com o intuito de ajudá-lo em sua árdua tarefa, a inveja é o pecado mais conhecido dos brasileiros. No entanto, é curiosamente o menos cometido, pelo menos é o que dizem os entrevistados. É que, segundo os dados coletados, 73% deles diziam conhecer o pecado da inveja, mas 84% responderam que nunca o haviam cometido. A conta não fecha, mas a vida segue.
“Esses resultados desconcertantes (…) tinham na verdade uma explicação, pois resumiam o que a literatura dizia: as pessoas conhecem o pecado, mas negam que o praticam”, escreveu o autor.
Zuenir também chama a atenção para outros fatos interessantes em seu livro. Por exemplo, o modo como separamos inveja de admiração.
“Na inveja, se o outro possui uma bondade, essa será negada pelo invejoso. Será enfocada como uma qualidade perdida, principalmente quando não se possui essa qualidade. Os invejosos concentram-se no desejo de destruir aquela qualidade que o vizinho possui”, diz a professora e psicóloga Lideli Crepaldi. “A admiração espontânea é substituída para remoer o que não existe ou conjecturar como extinguir o que existe.”
A equação é simples. Quanto mais distante de mim, mais “admirável” e quanto mais perto, mais invejável.
“Invejamos aqueles que navegam nas mesmas águas e que não levam grandes vantagens sobre nossos talentos”, escreveu o escritor português João Pereira Coutinho, em sua coluna na Folha. O psicanalista iniciante não inveja Contardo Calligaris, mas o vizinho que também trabalha em uma clínica. O escritor iniciante não inveja Valter Hugo Mãe, mas o colega que conseguiu publicar um livro antes dele. A cantora de bar não inveja Elis Regina, mas a moça que fechou contrato com a mesma casa de shows por mais tempo que ela.
O VERDADEIRO INIMIGO
A inveja constitui uma cegueira seletiva. Ela veta o acesso ao que nós temos de melhor e nos direciona sempre para o que achamos que o outro tem de melhor. É isso que demonstra o professor e sociólogo Leandro Karnal em uma interessante palestra sobre o tema para o instituto CPFL.
O invejoso é aquele que tem dificuldade em lidar com os próprios fracassos. Ele é infeliz porque não consegue pensar naquilo que tem. E é por essas e outras que a tal da envidia é considerada uma patologia grave – ela destrói a autoestima.
“A inveja faz as pessoas pararem no princípio, antes de realmente começar, de forma a não poder seguir para caminho algum”, afirma Lideli. “Quando invejamos, escolhemos contra nós mesmos.”
A cura para este mal tão secreto quanto estrutural pode estar então no exercício de olhar mais para si mesmo; de reconhecer os próprios limites e a própria capacidade. Além disso, o invejoso “precisa deixar de odiar esse outro ‘imaginário’ que ele supõe ser culpado por seu destino e dor”, indica Heloisa.
Em época de início de novos ciclos, o conceito socrático de conhece-te a ti mesmo se faz necessário, urgentemente necessário. Pelo visto, neste ano que chega, precisamos nos conhecer mais e nos desprezarmos menos.