Por Gabriela Gasparin
Vera França tinha 19 anos quando posou nua pela primeira vez como modelo vivo para artistas fazerem obras de arte com as curvas de seu corpo. Profissão que mantém até hoje, aos 73 anos. “Depois que comecei, só trabalhei como modelo a vida toda”, revelou.
Ela não faz a menor ideia de quantas pinturas, desenhos, esculturas e fotografias já foram feitas com suas formas em todas as fases da vida, passando pela juventude, períodos de gravidez e velhice, mas garante: “é muito, muito, muito mesmo.”
Nascida em um sítio no interior de Pernambuco, ela se mudou ainda jovem com a família para a Bahia. A mais velha de 13 irmãos, aos 15 anos saiu de casa e foi cuidar da própria vida. Morou em pensões e foi operária em fábricas de roupas e sapatos em Salvador.
Interessou-se pelo meio artístico e tentou ser bailarina de cancan num circo. “Eu gostava dessas coisas de se enfeitar toda”. Após um tempo, conseguiu o papel de “menor mulher do mundo” num espetáculo ilusionista na capital baiana. Ela ficava de biquíni numa sala com espelhos. As pessoas entravam e a viam bem pequeninha de longe, por trás de um aquário.
Em uma dessas apresentações foi vista por um estudante que a indicou para ser modelo vivo na Faculdade de Belas Artes de Salvador. Vera fez a entrevista num dia e começou a trabalhar no outro.
O teste consistia em fazer algumas poses nua. “Eu fiz uma pose em pé, uma sentada, outra de costas, uma deitada com a mão na cabeça e outra deitada de novo. E ai já comecei a posar.” No mesmo dia, recebeu a recomendação para não pintar os cabelos, nem tomar sol na praia ou posar maquiada. “Tem que ser a pessoa natural”, explicou.
‘Com gordura e tudo’
E Vera ficou sem pintar os cabelos até hoje – mesmo com a idade avançada, ainda preserva um grisalho natural. Sente-se feliz e valorizada por ainda ser procurada para posar, mesmo na velhice. “Eles precisam de modelo diferente, com gordura e tudo. Enfim, natural, né? Eles não ligam para a barriga.”
E é justamente o fato de ser valorizada como é o que mais a encanta na profissão. “Se eu não tivesse valor, com a idade que eu estou e meu corpo já mudado, eles não me procuravam. Então eu fico contente, fico alegre, me considero valorizada. A arte copia a vida e a arte não tem fim, né?”
A modelo nunca se esqueceu de certa vez, aos 29 anos, quando pensou que teria que deixar a profissão ainda jovem. “Eu falei assim para um professor, ‘nossa, já estou com 29 anos, logo eu vou deixar a profissão porque ninguém vai me aceitar mais’. Ele falou, ‘imagina, você ainda tem chão pela frente, só se você não quiser, mas quanto mais idade, melhor ainda’. Aquilo ali me alegrou. Pronto, até hoje estou aqui nessa palavra.”
‘Guerriei, guerriei’
Não que a vida como modelo vivo tenha sido fácil. Vera batalhou muito todos esses anos e, mesmo assim, nunca conseguiu pagar um convênio médico. “Infelizmente eu nunca consegui. Lutei, lutei lutei. Guerriei, guerriei e nunca consegui.”
Mãe de duas filhas, posou grávida e até de madrugada para sustentar as crianças – uma nasceu em Salvador e a outra em São Paulo, 18 anos depois – ela saiu do Nordeste rumo à capital paulista em busca de mais trabalho. Disse que nunca se casou e criou as filhas praticamente sozinha.
Vera nunca teve vergonha de ser observada em todos os mais íntimos detalhes pelos artistas. Pelo contrário, sempre fica tão concentrada em fazer a pose corretamente que nem percebe que está nua. “Eu digo aos estudantes, ‘é assim mesmo, [a obra] não precisa ficar bonita, é só vocês aprenderem e pronto. Eu quero passar meu astral para vocês levarem para o papel, para a tela, o barro, a escultura’.”
Em São Paulo, disse que até tentou voltar a trabalhar em fábrica uma vez, mas não se sentiu respeitada e pediu as contas. “Não me dei bem. Eu não gostava de ser mandada. Aliás, ser mandada tudo bem, mas com respeito, mas não fazendo pouco caso (…). Eu disse, eu prefiro é trabalhar nua, que ninguém me desrespeita. Eu nasci para isso. E aí fiquei até hoje.”
Preconceito
Vera guarda uma ou outra história de estudantes que a assediaram ou que queriam namorar com ela por ficarem encantados com as curvas de seu corpo. Revelou, ainda, que sofria certo preconceito no passado, principalmente no Nordeste, de pessoas que julgavam sua profissão por desconhecimento. “Tinhas muitos que entendiam a profissão, mas a maioria achava que era mulher de programa antigamente.”
Em São Paulo, disse que até tentou voltar a trabalhar em fábrica uma vez, mas não se sentiu respeitada e pediu as contas. “Não me dei bem. Eu não gostava de ser mandada. Aliás, ser mandada tudo bem, mas com respeito, mas não fazendo pouco caso (…). Eu disse, eu prefiro é trabalhar nua, que ninguém me desrespeita. Eu nasci para isso. E aí fiquei até hoje.”
Sentido da vida
E mesmo aos 73 anos, Vera revelou que ainda não sabe o sentido da vida, mas afirma que não alcançou seu objetivo final, que é viver em paz. “Ah, eu nem sei te responder o sentido da vida… Se eu não consegui meu objetivo até agora então eu tenho que dar uma parada para ver qual é o futuro que eu tenho que encontrar, estou procurando ainda, ainda não deu certo.”
Perguntei qual seria esse “objetivo”: “A única coisa é poder comprar meu remedinho, minha comidinha e morrer sossegada. Morar num lugar onde eu fique sossegada. Ainda não alcancei isso aí, estou na luta. Talvez venha logo ou talvez demore muito, enquanto eu tiver força eu vou puxando o carro, né, até cansar e parar.”
O sentido da vida Vera pode até não saber, mas é com bastante certezas que ela fala sobre para que veio ao mundo. “A minha missão é de ajudar meus netos e pousar ainda pras pessoas que gostam de me usar como artista. Isso é que eu gosto. É uma missão e eu quero terminar ela posando mesmo.
Nem que seja uma pose não tão retorcida, mas a pose natural, a pose da vida. Eu quero que aconteça isso. Agora vai fazer 54 anos no mês de março que estou trabalhando como modelo. Por isso eu acho que essa é minha missão e eu vim para cumpri-la.”
Vidaria é um projeto parceiro Conti outra.
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Conheçam mais essa linda mulher em uma entrevista que ela fez no Jô.