Aos juízes do mundo, declare: “Não sou réu!”.

Não é que nunca tenham sonhado aqueles que mandam os outros jogarem seus projetos de nuvem no lixo ou no fogo. Devem ter perdido o fogo ao jogarem seus sonhos no lixo. Desses dementadores da esperança, crescem os desertos de amargura. Sempre prontos a apontar as falhas dos outros, a murchar as alegrias infladas de crença no futuro, não oferecem soluções ou alternativas que não sejam mastigadas pelos dentes da usura. Apenas oferecem a penalidade ao sonhador. Sonhos são perigosos, pois podem se tornar realidade. Realidade dura de ser encarada por aquele que desistiu dos seus caminhos e parou na primeira sombra que encontrou.

O aluno brilhante dos protocolos não se conforma com o brilho dos desajustados. Vive com a mão levantada e o dedo a postos, disposto a denunciar a verdade sobre o que é o que não é, considera-se legitimado pelo poder de dizer o que é bom ou não, o que merece ou não ser acessado, considerado. Dessas declarações as contradições são condições, afinal, o desejo de aprovação faz parte dos protocolos também. Vai-se com a maioria simpatizante, muda-se de ideia não por si, mas para ser aceito, para estar no ritmo, para não mudar. Ironicamente, são as centelhas que estes juízes já não conseguem acender em si que os atrai naqueles que ainda as tem. Tantas vezes, apenas para destruí-las.

Quem nunca tentou compartilhar com uma alma amiga a sua alegria, uma conquista, uma esperança, um sonho, e foi enxotado pela reprovação pouco refletida da outra parte? O aspirante a escritor ouve do leigo que aquilo não é poesia, não é literatura, que é simplório; o aspirante a artista que escuta que seus desenhos são pouco realistas; que seus traços são grotescos, que não é original; o pretenso ator escuta que é bonitinho mas não terá futuro; assim também com o músico, que tem apontadas as suas desafinações e a simplicidade ingênua das suas composições; ou o pretenso físico, escuta que não consegue sequer lidar com simples contas matemáticas, quanto mais a laboriosa física! À todos os quixotes, que desconhecem berços de ouro e colchões de pena, reservam-se silêncios desconfortáveis e debochados.

Quantas vezes estas repreensões vêm cedo, vêm de dentro de casa, vêm dos amigos. Quem pode culpar que critiquem? Essa é talvez a única forma que tenham de expressar tamanha a dor que sentem por não poderem desfrutar dessa alegria de acreditar, de se permitir, de correr atrás de algo que lhe faça desejar gritar aos quatro ventos a sua euforia. Não se pode afastá-los todos da vida, estas pessoas queridas, por mais que a descrença deles nos doam, é preciso entender que não é nada pessoal, é só que não podem oferecer o que não têm.

Pode ser que realmente apenas queiram aquilo o que acreditam ser bom, não desejam deixar que o sonhador tropece em suas próprias pedras, enfrente suas próprias tempestades, quebre a própria cabeça. Estes que já o fizeram ou temeram tanto a violência do fracasso, que sentiram suas ferroadas antes mesmo da ação, querem ser escudo dos “ingênuos”. Não imaginam que talvez não sejam estes tão ingênuos, não respeitam que estes ingênuos podem suportar essas dores, não se dão conta de que o mesmo escudo que impede o fracasso é o escudo que bloqueia a possibilidade de realização.

É tão difícil entender que o caminho por si só vale a pena. Vivemos para quê afinal? Como seria o mundo se todas as pessoas vivessem da mesma forma, desejassem as mesmas coisas, sustentassem os mesmos comportamentos? O lance de desejar intensamente alguma coisa, ainda que seja difícil, ainda que pareça distante, não consiste necessariamente em acertar o alvo mas em ter a experiência de jogar com as próprias mãos, de caminhar com os próprios pés e descobrir o próprio caminho. A delícia da aventura de viver é de cada um, ninguém pode fazer isso pelo outro. São nessas empreitadas, inclusive, que é possível surpreender-se com a constatação de que o caminho é outro, ou de que aquele alvo não era bem o que se desejava acertar. A vontade é trajeto e não parada.

Aqueles que se confrontam com os juízes do mundo, que escutem seus julgamentos, pois podem até oferecer algo de útil: que as alfinetadas desenhem os furos do artesanal filtro da vida. Ademais, escutemos, ainda, falemos também, não vale se render ao mistério dissimulado que só engessa a experiência do sonhar. Aquele que não se faz réu, não há que temer pela condenação de seus sonhos. É trajeto, é caminhada, é passo, é estrada. Dessas modas, o limite é só o céu.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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