Aprendendo a amar o ódio

Tendo a percepção que sempre terei a luz e a sombra, o preto e o branco, e a realidade do ódio convivendo com o profundo amor, que por trás de cada gesto de afeto, existe também um gesto de cobrança, eu vou entender que a nossa natureza convive com essa realidade e que o ser humano é mal. Reconhecer o ser humano como puro ódio é construir uma utopia, tão negativa e tão falsa quanto reconhecer o ser humano como um ser profundamente amoroso, incapaz e só alguns monstros por tara genética é que seriam capazes dessa dor. Todos somos capazes de grandes gestos de ódio.

O inferno são os outros, porque também o paraíso está nos outros.”

Leandro Karnal

A perda trágica de um amigo. O pagamento obrigatório de um acordo onde me senti injustiçada. O momento político brasileiro. E ódio. Muito ódio. Esse ódio tomou conta do meu coração em uma proporção enorme e incontrolável. E ele perdurou. Embora os assassinos tenham sido presos, embora eu entenda que dinheiro é um bem material, embora tenha plena convicção de que os políticos são o reflexo de um povo acomodado, alienado e relapso, embora entenda que amar e perdoar são sentimentos nobres e libertadores, ainda assim senti ódio. Muito ódio.

A irreversibilidade da morte gera um ódio que nada, nenhuma justiça, nem do homem, nem divina, pode apagar. A percepção quase que passiva de que um ser humano é capaz de tirar a vida do outro a sangue frio, praticamente de graça, é insuportavelmente indignante. E, nesse momento, sentir ódio é o que me mantém viva. E mesmo que eu saiba que o mal existe no ser humano desde que mundo é mundo, tenho ódio.

E esse ódio que sinto me faz revisitar lugares sombrios de meu ser onde nem sempre gosto de estar e, independente das justificativas de racionalização e compreensão que busquei na tentativa “apaziguá-lo”, ele continua latente. Sei que senti e sentirei ódio por muito tempo ainda, pelos motivos já citados e por tantos outros motivos. Mas, finalmente compreendi que o ódio é uma parte essencial do que sou, pois quando me indigno, quando o mal parece insuportável e paralisante, o ódio se torna uma parte ativa de mim, é ele que me faz sentir viva.

E no momento político em que nos encontramos, com os discursos de ódio tão estampados nas “timelines” e nas conversas diárias, entendi algo que é tão óbvio, mas que com nossa tendência à hipocrisia tentamos (em vão) evitar: sim, o ódio faz parte do que somos. O ódio talvez faça uma parte muito maior de nós do que gostaríamos. E odiar muitas vezes é mais fácil que amar e infinitamente mais fácil do que perdoar.

Jane Goldberg em “O lado escuro do amor” dedicou-se a estudar o ódio, e o identificou como um sentimento que faz parte essencial do que somos, complementar ao amor e que equivocadamente nos é ensinado como algo ruim. O ódio não é um mal, o que escolhemos fazer com ele, talvez. Odiar não nos faz ruins, apenas nos faz humanos. Mas, a maneira como escolhemos expressar nosso ódio, as palavras e atitudes muitas vezes destrutivas que são geradas através desse sentimento tão essencial para nossa saúde mental, sim, isso nos faz piores.

Segundo Goldberg odiar o ódio tem profundas consequências negativas. Pois, odiar nosso próprio ódio é odiar uma parte vital de quem somos, que nos faz desejar mudanças, que nos incomoda, aquieta, move, e, portanto, nos mantêm vivos. Para aprender a amar, é preciso também aprender a odiar, pois não existe amor sem ódio. O que existe são maneiras mais pacíficas e saudáveis de odiar.

Além disso, o mal, assim como o ódio, também é inerente a todo e qualquer ser. A alemã Hannah Arendt em “A banalidade do mal” escreveu:

“O mal não é extraordinário, o mal não está inteiramente fora das pessoas, o mal não é um monstro, o mal é banal, o mal é comum, o mal é presente, o mal está em muitos lugares, o mal está em todos nós”.

Mas, diferentemente do ódio que é essencial e quase involuntário, o mal é uma escolha pessoal. Nossos sentimentos nos tornam iguais, o que escolhemos fazer com eles nos difere. Portanto, fazer o bem ou o mal é uma escolha diária, pautada por valores, crenças, sentimentos, histórias de vida e tantas outras coisas extremamente pessoais e que por sua vez, nos tornam tão diferentes.

E infelizmente parece que nossa capacidade de fazer o mal é maior do que fazer o bem, talvez seja porque um gesto bondoso vem sempre acompanhado de cobranças enquanto que um gesto ruim é livre. Talvez seja porque enquanto eu odeio, me sinto superior àquele que odeio. Ou talvez porque aprendemos a odiar o ódio, muito mais do que aprendemos a amar o amor.

E se as causas do mal não são exatas, o que é certo é que quando não reconhecemos essas dualidades tão essenciais que existem em nós,  amor e ódio, bem e mal, quando não compreendemos que as pessoas podem ser ao mesmo tempo boas e más, aprisionamo-nos no modo de pensar infantilizado, que é incapaz de ultrapassar o mecanismo da dualidade bom-mau e ficamos para sempre condicionados a amar o amor e o odiar o ódio, como duas coisas separadas, uma utopia que não se sustenta e gera mais infelicidade ainda.

Quem sabe se nós aprendermos a amar o ódio e nos permitirmos senti-lo, se entendermos que o mal é mais comum do que pensamos e que ele não está somente no outro, ele está também em nós. Se entendermos que se nós não formos capazes de odiar, tampouco seremos capazes de amar, talvez nunca encontraremos um pouco de paz. Portanto, mesmo amando o amor e sabendo que ele é tão poderoso, ainda, por tudo isso, por todas as mortes matadas e por tudo que é mal, para que eu tenha saúde emocional, para que eu ainda com todo o mal, possa crer na prevalência do bem, sentirei e amarei o ódio.

Imagem de capa: MarinaP/shutterstock

Tatiana Nicz

Libriana com ascendente em Touro. Católica com ascendente em Buda. Amo a natureza e as viagens. Eterna curiosa. Educadora e contadora de histórias. Divagadora de todas as horas. Escrevo nas horas vagas para aliviar cargas, compartilhar experiências e dormir bem. "Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia." Guimarães Rosa

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