Por Tatiana Nicz

“Mariana é viciada em repetições. Precisa viver e reviver sempre as mesmas frustrações porque, assim, sente-se segura. Dessa maneira, ela acha, outras frustrações não viverá. As mesmas, ela já tira de letra, acostumada.”
Aritmética – Fernanda Young

Sabemos que crianças aprendem através de exemplos, esses dias vi uma propaganda bem forte do Governo Australiano que mostra crianças imitando os adultos, xingando, fumando, bebendo, brigando. Isso ficou mais claro para mim quando vi uma criança de 3 anos xingando, fiquei surpresa, mas fez sentido quando lembrei da propaganda, muita gente usa xingamentos como se fosse algo banal, então é compreensível ver crianças tão pequenas falando algo tão ofensivo quando estão com raiva, porque raiva todo mundo tem, para elas deve ser qualquer coisa que se fala quando se está com raiva.

Automaticamente nós repetimos outros que repetiram outros que repetiram outros – e aqui não colocarei culpa apenas nos pais, todos nós na sociedade temos responsabilidade. Não sei exatamente quando isso começou, mas me baseando pela Bíblia, acho que já faz um “tempinho”. Enfim, o ponto é: se a gente não fizer algo com consciência, tendemos a repetir padrões. E o problema é que na raiva, não há consciência.

[Aparte:
Quando levantamos o tom de voz ou falamos de maneira agressiva com alguém é porque estamos com raiva, sim sei, isso é bem óbvio. Mas uma teoria da neurologia diz que a raiva é também acessada na parte basal do cérebro – o reptiliano (ver teoria do cérebro trino) – então quando estamos com raiva ou nos sentimos ameaçados somos incapazes de pensar e agir de maneira racional. Sendo assim, em uma discussão quente não existe racionalidade, o que existe são palavras que machucam e raiva, muita raiva. E isso nos impossibilita de dialogar ou de se conciliar (pelo menos naquele momento). Fora os níveis de estresse que isso causa: quando estamos estressados o cérebro manda sinal para o corpo de que estamos em perigo, quando estamos em estado de alerta as glândulas supra-renais produzem um hormônio chamado cortisol, o cortisol faz o corpo diminuir a queima calórica para poupar energia, não quero me estender em detalhes técnicos, mas na prática é bem simples, cortisol deixa o metabolismo lento, ou melhor, engorda. Viver com raiva deve causar muito mais danos à nossa saúde, mas vocês entenderam o ponto, então vou me ater apenas à essa palavra mesmo que já serve para assustar muito gente: engorda. Ou seja, além de não conseguir resolver algo, porque com raiva ninguém consegue pensar, tem esse pequeno bônus que é engordar.
Fim do aparte]

Eu cresci em um lar aparentemente normal, tinha pai e mãe, mas eles brigavam, até que se separaram e (para não perder o costume de pais que se separam) brigaram mais um pouco. Tinha irmão e irmã, mas a gente brigava. E contaram para nós que era normal o casal brigar, que era normal irmão brigar. Como em muitas outras casas isso também acontecia, parecia que era normal mesmo. Fazia sentido que desavenças sejam normais entre pessoas que dividem o mesmo teto, mas não tinha tanta certeza em qual nível e frequência deveria ser considerado “normal”, afinal qual é o limite de “normal”? Ou melhor, normal não sei se existe, mas então do saudável? Lembro que sentia raiva, muita raiva e já naquela época não fazia sentido que isso deveria ser tão normal/saudável assim.

Vi que talvez não fosse, quando uma amiga foi me visitar. Acho que não nos damos conta que estamos acostumados com algo que não nos faz bem até vermos a cara de espanto de outra pessoa, foi assim naquele dia, minha irmã e eu começamos a discutir e quando vi a menina estava assustada dizendo que queria ir embora. Eu entendi a razão de sua surpresa depois que conheci a família dela: acolhedora, harmoniosa e sorridente. Pessoas para lá de especiais que gosto muito. E hoje, tantos anos depois, finalmente entendi sua reação: tudo é questão de costume, mas a gente também se acostuma com as coisas que não fazem bem e passa a achar “normal”, realmente, para quem não está acostumado e para qualquer ser, brigar não é legal. Pelo menos eu não gosto. Então é uma pena mesmo que nos acostumamos.

E tão ruim quanto brigar é ver os outros brigando. E o problema é que quando estamos com raiva é difícil ponderar, respirar, entender que devemos poupar os espectadores, olha, tem que treinar muito para conseguir isso. É o que eu pretendo. Porque ninguém briga sozinho, existe na briga um processo de retro-alimentação. E tem um agravante no padrão de repetição, se você se acostuma com o caos, é só nele que você vai aprender a viver. Como brigava com meus irmãos, acho que desenvolvi habilidades para viver no caos que não tinha em tempos de harmonia, fases de harmonia me entediavam, então inconscientemente passei a reproduzir situações caóticas e dramáticas na minha vida para me sentir à vontade.

Até que um dia o drama de verdade, aqueles de filmes que a gente se mata de chorar, do tipo que vem em turbilhão e muda tua vida de cabeça para baixo, alheio à sua vontade e escolhas, então esse tipo, bateu na porta. Quando isso acontece a única alternativa para você continuar a viver bem é justamente não dramatizar. Então que eu finalmente aprendi a mudar o canal. Mas também não estou sozinha nisso, tem muita gente acostumada com o caos e o drama, tem muita gente reconstruindo esse ambiente à sua volta. Parece que as pessoas estão em geral mais adaptadas ao caos do que à paz. Vivemos em estado de alerta e por muito pouco ou quase nada brigamos. Talvez isso também está contribuindo para deixar a população mundial mais pesada – em todos os sentidos.

Como eu acredito que toda mudança é possível, mas para isso temos que querer, não com pouco trabalho estou aprendendo a aquebrantar esses padrões, para isso resolvi seguir alguns passos:

1) aprenda a se relacionar em paz com você mesmo, seja gentil com deus defeitos e fragilidades e pare de se punir tanto; lembre-se que você também precisa ser uma boa companhia para você mesmo e para os outros;
2) aprenda a se proteger, livre-se de ambientes e relacionamentos com pessoas que vivem nesse padrão, nesse ano que passou me afastei de muitas pessoas, mesmo de pessoas que eu amava, para o bem de ambas as partes, porque juntos criamos certo padrão;
3) tenha filtro, escolha conscientemente relacionamentos e círculos de amizade mais harmoniosos;
4) aprenda a respirar e ter calma na hora de uma discussão, a escolher melhor as palavras quando as palavras do outro começam a doer. (é nessa parte que não cheguei, ou melhor cheguei, mas ainda não consegui dominá-la).

E a solução está no costume: temos que nos acostumar também com o fato de que podemos sintonizar outro canal e viver em harmonia e, igual minha amiga lá em cima, realmente quanto menos caos você tem em sua vida, mais sensível à ele você fica. Hoje o caos tem me incomodado muito mais. Um palavrão ou xingamento para mim tem sentido e muita força, não é apenas uma palavra torta no meio da raiva. Talvez mais alguns anos de treino me ajudem a chegar no número 5 como diz a Bíblia: “Não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te dá na face direita, volta-lhe também a outra;”.

Então mãos à obra, tem muito trabalho pela frente! Em tempo: para 2015 anotado, leveza de ser, ou seja, mais amor e menos “guerra”.

Tatiana Nicz

Libriana com ascendente em Touro. Católica com ascendente em Buda. Amo a natureza e as viagens. Eterna curiosa. Educadora e contadora de histórias. Divagadora de todas as horas. Escrevo nas horas vagas para aliviar cargas, compartilhar experiências e dormir bem. "Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia." Guimarães Rosa

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