Eu ainda não era nascida quando, entre o final da década de 60 e início dos anos 70, minha mãe, lá pelos seus trinta anos de idade e sete filhos, foi trabalhar como doméstica na casa de Dona Albertina, uma senhora portuguesa de classe média com quem minha mãe imediatamente simpatizou. Tinha a voz doce, transparecendo grande humanidade e generosidade, o que fazia com que minha mãe a visse com enorme afeto. Por essa imediata conexão, a ela minha mãe se dedicava com grande empenho, trabalhando além do horário quando necessário e sendo ouvidos para suas confidências.
Dona Albertina gostava de servir, vez ou outra, bananas fritas no almoço. Sistemática, dava orientações à sua serventia de como gostava que as coisas fossem feitas. Sobre suas bananas fritas, especificava que aquelas que se quebrassem durante o processo de fritura deveriam ser descartadas, jamais levadas à mesa.
Um dia, ao fritar as bananas que naquela ocasião pareciam um pouco mais maduras do que de costume, acabou por quebrar três delas. Assim, atenta aos gostos da patroa, serviu as bananas inteiras e, ao voltar para a cozinha para fazer a limpeza, decidiu que, ao invés de jogar as acidentadas no lixo, as guardaria num daqueles potinhos de margarina vazios.
Ao final do dia de trabalho, trocou-se, e, segurando seus poucos pertences numa mão e o potinho de bananas quebradas na outra, foi até Dona Albertina e anunciou:
– Dona Albertina, terminei e já estou indo embora. Olha, eu guardei neste potinho as bananas que quebraram, mas não joguei no lixo porque queria levar para os meus filhos.
Para surpresa de minha mãe, o semblante da mulher que ela tanto admirava, fechou-se numa feição rude e logo respondeu:
– Perolina, daqui de dentro não se leva nada. Se quiser comer, é aqui. Por favor, jogue isso no lixo como eu mandei.
Minha mãe, cabisbaixa, obedeceu, pediu desculpas e num fio de voz despediu-se da patroa. No dia seguinte meu pai, Seu João Leite, passou na casa de Dona Albertina para acertar as contas de minha mãe. Dona Albertina tentou se explicar, dizer que minha mãe estava exagerando e que voltasse ao trabalho, o que nunca aconteceu. Acho que não pela humilhação ou por incapacidade de entender as razões da patroa, mas pela atitude mesquinha ter vindo de alguém que lhe parecia tão humana.
Não tenho dimensão da dor que aquilo causou em minha mãe, mas é fato que ela nunca esqueceu. Nesses dias, cada vez mais distante, com momentos de total esquecimento sobre tudo, bananas ainda lhe trazem à sua memória frágil o nome de Dona Albertina, o qual pronuncia sem o menor sinal de rancor, pelo contrário, parece guardar de Albertina apenas o afeto que as conectava antes do dia fatídico.
Outro dia, sentadas em meio às suas plantas e bananeiras do quintal, tentando testar sua memória cada vez mais falha, lhe fiz diversas perguntas simples, sobre quantos filhos teve, sobre sua infância e outras coisas corriqueiras e a todas, após algum esforço, respondeu que não se lembrava. Mas quando coloquei diante de si um enorme cacho de banana e perguntei de quem ela se lembrava, imediatamente respondeu em tom calmo:
– Dona Albertina.
Em mim, todas as vezes que a ouvi contar essa história, não sei o que me doía mais, se a cena brutal ou a imagem de minha mãe tentando dividir entre os sete filhos as três bananas quebradas, caso tivesse tido permissão para levá-las.
Felizmente, nos anos que se seguiram, crescemos, e todos, cada um a seu modo, pudemos proporcionar à minha mãe uma vida com fardo mais leve. Ela viajou pelo mundo, teve boas roupas, boa comida, boa assistência médica, a presença constante dos filhos e, principalmente, seus sítios cheios de bananeiras.
Lembro que quando ainda estava em boa saúde, se embrenhava no meio do mato dos seus sítios e manchava com leite de bananeira as roupas novas que lhe dávamos, ao cortar com um facão os cachos de banana que, de tantos, acabava por doar aos vizinhos. Até hoje ela se alegra quando alguém arranca um daqueles cachos e põe em cima da mesa da cozinha para ela ver.
Para celebrar suas bananas, vez ou outra faço um daqueles deliciosos bolos de banana de padaria que ela come em quadradinhos e olhar perdido no tempo, provavelmente pensando em como seria catártico poder se juntar à Dona Albertina para um chá com bolo de banana para então poder, ambas, curar as feridas deixadas por três bananas fritas quebradas.
No mês em que se comemora o dia internacional da mulher, andei refletindo sobre o que é, afinal, ser uma mulher empoderada. Andei pensando e acho que uma mulher empoderada é uma mulher que toma o poder para si. Minha mãe tomou o poder para si quando aprendeu a fazer surgir comida em nossa mesa em tempos sombrios; quando, contra todas as probabilidades, criou filhos decentes e viu seus sonhos se tornarem realidade, mas, especialmente, quando não deixou que três bananas quebradas a fizessem negociar sua dignidade, a encolher-se na cama sentindo pena de si mesma, duvidando de sua capacidade de seguir adiante. Empoderada é uma mulher que, não obstante as agruras da vida, não se vitimiza, não vive à margem dos desafios que lhe são impostos e protagoniza sua própria história. Minha mãe foi e é uma mulher empoderada.
Penso que se eu pudesse mandar um presente para Dona Albertina, seria um belo cacho de bananas graúdas com um bilhetinho:
– Dona Albertina, uma banana pra você!
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