“As coisas essenciais”, uma crônica de Rubem Alves

Leia este poema bem devagar, pois cada imagem merece a preguiça do olhar.

“No mistério do sem-fim

equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim

e, no jardim, um canteiro:

no canteiro, uma violeta

e, sobre ela, o dia inteiro

entre o planeta e o sem-fim

a asa de uma borboleta”.

É pequeno, mas diz tudo. Nada lhe falta, Uni-verso. Nenhuma palavra lhe poderia ser acrescentada. Nenhuma palavra lhe poderia ser tirada. Assim se faz um poema, com palavras essenciais. O poema diz o essencial.

O essencial é aquilo que se nos fosse roubado, morreríamos. O que não pode ser esquecido. Substância do nosso corpo e da nossa alma. Por isto as pessoas se suicidam: quando se sentem roubadas do essencial, mutiladas sem remédio, e a vida, então, não mais vale a pena ser vivida.

Os poetas são aqueles que, em meio a dez mil coisas que nos distraem, são capazes de ver o essencial e chamá-lo pelo nome. Quando isso acontece o coração sorri e se sente em paz.

Encontrou aquilo que procurava Kirilov, personagem de Dostoievski assim descreve o encontro com o essencial. “Há momentos em que a gente sente de súbito a presença da harmonia eterna. É um sentimento claro, indiscutível, absoluto. Apanhamos de repente a natureza inteira e dizemos ‘é exatamente assim!’ É uma alegria tão grande! Se durasse mais de cinco segundos a alma não o suportaria e teria de desaparecer. Nesses cinco segundos vivo uma experiência inteira, e por eles daria toda a minha vida, pois eles bem o valem”.

Chamava-se Norma. Estava doente, muito doente. Na véspera de sua morte, arrastou-se até o banheiro e foi até a pia para lavar-se dos vômitos. Abriu a torneira e a água fria escorreu sobre as suas mãos. Ela parou como que encantada pelo líquido que a acariciava. E de sua boca saíram estas palavras inesperadas: “A água… Como é bela! Sempre que a vejo penso em Deus. Acho que Deus é assim…”.

A morte na pia… A água que escorre… Os olhos contemplam a eternidade… O universo essencial de Norma está cheio de fontes frescas e regatos transparentes onde brincam as suas mãos.

O nome do filme eu nem me lembro. Sei que se passava no Japão, um casal de velhinhos. A esposa havia morrido. Os filhos, reunidos para a divisão das coisas deixadas. De repente percebem uma ausência. O pai, onde estará? Pois não estava ali, entre eles. Depois de uma longa espera aflita, lá vem o seu vulto, banhado pela luz do crepúsculo.

“Papai, onde foi? Estávamos preocupados!”.

“Onde fui? Fui ver o pôr-do-sol. É tão bonito…”.

Os filhos repartem os despojos. Os olhos do pai contemplam o horizonte colorido… O universo essencial do pai está cheio de pores-do-sol. Sem eles os seus olhos ficariam eternamente tristes.

Este poema é de Brecht:

“Quando no quarto branco do hospital

acordei certa manhã

e ouvi o melro, compreendi bem.

Há algum tempo já não tinha medo da morte.

Pois nada me poderá faltar se eu mesmo faltar.

Então consegui me alegrar com todos os cantos dos

melros depois de mim…”.

A morte branca no quarto de hospital. Fora, o melro canta. Alegria pelos cantos que não ouvirei. No universo essencial de Brecht, o canto dos melros continuará, sem fim.

“Pergunto se, depois que se navega,

a algum lugar, enfim, se chega …

O que será talvez até mais triste.

Nem barca, nem gaivota: somente sobre-humanas

companhias…”.

Cecília Meireles sabia o que era essencial. No seu mundo as barcas navegariam as águas e gaivotas planariam pelos ares…

O que é essencial?

Os filósofos antigos reduziam o essencial a quatro elementos fundamentais: a água, a terra, o ar e o fogo. Concordo com eles. Pensavam estar fazendo cosmologia, mas estavam fazendo poesia. Sabiam dos segredos da alma.

Pois é disto que somos feitos. Posso imaginar um mundo sem que eu sinta por isto, nenhuma tristeza especial. Mas não posso pensar um mundo sem a chuva que caí, sem regatos cristalinos, sem o mar misterioso… Não posso imaginar um mundo sem o calor do sol que agrada a pele e colore o poente, sem o fogo que ilumina e aquece… Não posso imaginar um mundo sem o vento onde navegam as nuvens, os pássaros e o cheiro das magnólias…

Não posso imaginar um mundo sem a terra prenhe de vida onde as plantas mergulham suas raízes… São estes os amantes com que a vida faz amor e engravida, de onde brota toda a exuberância e mistério deste mundo, nosso lar. Não preciso de deuses mais belos que estes.

Ouço, pelo mundo inteiro, em meio ao barulho das dez mil coisas que fazem a nossa loucura, as vozes-poema daqueles que percebem o essencial. Elas dizem uma coisa somente: “Este mundo maravilhoso precisa ser preservado”. Mas ouço também a voz sombria dos que perguntam: “Conseguiremos?”.

Rubem Alves

O Retorno e Terno: crônicas. 27ª Edição. Campinas, Editora Papirus, 2008
Conheça o Instituto Rubem Alves e faça parte de seus projetos.

A quem interessar: o poema inicial da crônica é de Cecília Meireles e chama-se “Canção Mínima”. (Antologia Poética, 1963).

Rubem Alves

Foi um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros religiosos, educacionais , existenciais e infantis. É considerado um dos maiores pedagogos brasileiros de todos os tempos, um dos fundadores da Teologia da Libertação e intelectual polivalente nos debates sociais no Brasil. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Conheça o Instituto e a página oficial do autor no Facebook pelos links indicados.

Share
Published by
Rubem Alves

Recent Posts

Agnaldo Rayol falece de forma trágica aos 86 anos e deixa legado na música brasileira

O cantor Agnaldo Rayol, uma das vozes mais emblemáticas da música brasileira, faleceu nesta segunda-feira,…

12 horas ago

Padre causa polêmica ao dizer que usar biquíni é “pecado mortal”

Uma recente declaração de um padre sobre o uso de biquínis gerou um acalorado debate…

12 horas ago

A triste história real por trás da série ‘Os Quatro da Candelária’

A minissérie brasileira que atingiu o primeiro lugar no TOP 10 da Netflix retrata um…

13 horas ago

Você sente “ciúme retroativo”? Ele pode arruinar as relações

O ciúme retroativo é uma forma específica e intensa de ciúme que pode prejudicar seriamente…

2 dias ago

Reese Witherspoon volta à comédia romântica neste filme encantador que conquistou o público da Netflix

Este comédia romântica da Netflix com uma boa dose de charme e algumas cenas memoráveis…

3 dias ago

Dica Netflix: Filme com Chris Evans baseado em um inacreditável caso real vai salvar a sua noite

Baseado em uma história real de tirar o fôlego, este filme de ação estrelado por…

3 dias ago