Estamos diante de uma alarmante realidade: as crianças do século XXI, vítimas do acúmulo de tarefas e compromissos diários vivem rotinas dignas de altos executivos, sofrem de transtornos de ansiedade, dormem mal, comem todo tipo de porcaria industrializada, estão viciadas em aparatos tecnológicos, vivem atoladas em bens materiais cujo interesse dura um pouco além do tempo usado para desembrulhá-los e sofrem de solidão. Mas, o mais triste nisso tudo é o terrível efeito colateral da aceleração do crescimento: estamos criando crianças que não sabem, não podem ou não têm tempo de brincar. No que vai dar tudo isso?! É melhor que estejamos preparados para a próxima geração de adultos que, a julgar pelo tanto que tiveram suas reais necessidades negligenciadas, será constituída por pessoas enrijecidas, dispersas, incapazes de se colocar no lugar do outro, absolutamente insatisfeitas consigo mesmas e, por isso mesmo, sem condições de ler o mundo, a ponto de interpretá-lo e construir uma vida plena de interligações com seus semelhantes.
O apelo externo é muito grande. A mídia bombardeia os pequenos e os grandes com sedutoras novas invenções e artefatos que, a julgar pela expressão de plenitude e alegria daqueles que as possuem, são objetos indispensáveis. A propaganda conta com recursos sofisticados de neurociência, garantindo-lhes um eficiente acesso aos níveis subconscientes de cabecinhas incautas. Ao ver o produto estampado em veículos publicitários, brota no íntimo dos pequenos um desejo quase incontrolável de possuir os maravilhosos objetos contemplados.
Vítimas de um consumismo irrefletido, os adultos mal dão conta de controlar sua relação com o ato de adquirir coisas. Isso posto, fica claro o porquê de esses mesmos adultos sofrerem com uma enorme dificuldade de educar suas crianças de forma a que valorizem mais as relações de afeto e os momentos de convivência, em detrimento da aquisição de coisas e mais coisas para aplacar uma sede que é afetiva, mas foi traduzida em sede de consumo porque é muito mais simples comprar do que conquistar.
A mensagem que fica subentendida no ar das relações sociais é que a sua realização pessoal precisa ser representada por bens de consumo que reflitam uma aura de sucesso e respeitabilidade. Desesperados por aceitação, nós corremos o risco de nos empanturrar de coisas que não precisamos: dezenas de pares de sapato; coleções de bolsas dos mais variados formatos e cores; aparelhos celulares que vão virando lixo eletrônico acumulado nas gavetas; automóveis sofisticados e equipados com alta tecnologia, cuja manutenção pode nos custar dias de trabalho e de sono; aparelhos de TV de última geração capazes de acessar mais de 300 canais com todo tipo de programação pronta para nos entorpecer; notebooks e tablets carísimos, espalhados pela casa; uma profusão de carregadores e fones de ouvido, embaraçados em gavetas; armários abarrotados de roupas que até nos esquecemos de ter comprado; coisas, coisas e mais coisas para dar algum sentido ao fato de que trabalhamos demais e vivemos de menos.
Criadas à sombra dessa configuração, as crianças adquirem naturalmente o gosto por tornarem-se ávidas consumidoras das indispensáveis bugigangas que o mercado de brinquedos e afins produz, seguindo os preceitos de complexas pesquisas de interesse e desejo dos pequenos. A indústria do consumismo brilha na competência de atender os mais estranhos desejos que as crianças possam ter: balas com sabor de vômito, cocô de cachorro ou caca de nariz; armas idênticas às reais e que (pasmem!) atiram de verdade; jogos de videogame que premiam quem conseguir atropelar mais velhinhas; bonecas de compleições físicas anoréxicas e mais toda sorte de lixo consumível a preços nada módicos.
O resultado da voracidade por consumir mais e mais são crianças soterradas em brinquedos e objetos cujo interesse é substituído pela próxima coisa vislumbrada e imediatamente desejada. A consequência mais perturbadora dessa compulsão é o surgimento de uma espécie de pequeno triturador de objetos consumíveis. Mas, a responsabilidade não pode ser atribuída aos pequenos; eles não passam de vítimas de um comportamento adotado e idolatrado pelos adultos. Quem sabe já não esteja na hora de sairmos da rodinha viciante de adquirir maravilhas da modernidade sem moderação. Quem sabe não esteja na hora de recuperarmos a consciência perdida nas sacolas de compras e descobrirmos dentro de nós pessoas que podem ser felizes sem a obrigação de vestir o uniforme da “pessoa bem-sucedida”? Quem sabe já não estejamos prontos para reverter a ordem das coisas e agir na recuperação desses pequenos consumistas vorazes. Quem sabe na próxima oportunidade, nosso presente não venha embrulhado numa caixa cara a ser parcelada na fatura do cartão de crédito; mas seja algo capaz de fazer brilharem os olhos e criar memórias afetivas que não podem ser compradas nem reproduzidas em objetos de consumo. Em vez de coisas, procuremos oferecer nosso tempo, nossa disponibilidade em conviver.
O presente? Sejamos ousados a ponto de recriar experiências perdidas no tempo. O presente pode ser algo maravilhoso, impossível de ser embrulhado: um pic-nic no parque; um banho de esguicho; uma cabana de lençol feita na mesa da sala; uma noite de acampamento no quintal; uma casinha feita de caixa de papelão; um almoço feito em conjunto; uma sessão de contação de histórias no escuro, cada um com uma lanterna; um tempo vivido junto, com afeto, presença e disponibilidade afetiva. Esse tipo de presente tem a propriedade mágica de não poder ser guardado em caixas e de desencaixotar de dentro de nós a inata capacidade de desejar o amor em sua forma original: livre e imaterial!
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