As Crônicas de Nárnia é uma série de sete contos, escrita pelo irlandês C. S. Lewis. É a obra mais conhecida de Lewis, sendo a série considerada um clássico da literatura. Escritas por Lewis entre 1949 e 1954, as Crônicas de Nárnia foram adaptadas diversas vezes, inteiramente ou parcialmente, para a rádio, televisão, teatro e cinema.
Nas crônicas há temas tradicionais cristãos, bem como elementos da mitologia grega e nórdica, e também temas tradicionais de contos de fadas.
Nas Crônicas de Nárnia as aventuras giram em torno de crianças que descobrem, por acidente, o Reino de Nárnia, um lugar mágico, com animais falantes, e onde ocorrem batalhas entre o bem e o mal – típico tema cristão. As crianças descobriram Nárnia, por meio de um guarda roupa escondido, e vivem suas aventuras ajudadas e instruídas pelo Grande Leão e Rei, chamado Aslam..
Tratarei nesse texto do primeiro filme O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa. Esse conto foi concluído durante o inverno de 1949 e publicado em 1950. Trata-se do primeiro romance da série em ordem de publicação; porém, o segundo em ordem cronológica. O filme narra a história de quatro irmãos: Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia Pevensie.
Para Carl Jung, o numero quatro é o numero da totalidade, do Self. Temos no inicio filme quatro crianças – dois meninos e duas meninas – representando uma totalidade e um equilíbrio entre o masculino e feminino. Mostrando então que se trata de uma jornada em rumo da individuação.
O fato dos heróis serem crianças é algo importante. A criança simboliza a renovação, a juventude, renascimento. As crianças estão em meio a II Guerra em Londres. O pai deles foi lutar e a mãe não consegue sozinha manter as crianças em segurança, por isso as envia até a casa de um professor que morava no campo. Lá descobre de um guarda-roupa que possui uma passagem que liga nosso mundo ao mundo de Nárnia.
Lucia, a caçula, é a primeira a descobrir, durante uma brincadeira. Ao entrar em Nárnia, descobre um exuberante país que enfrenta um terrível e prolongado inverno, imposto pela falsa rainha do país, Jadis (Feiticeira Branca, ou Rainha da Neve), e que já completava cem anos. Lá ela conhece um fauno – Tumnus – de quem fica amiga. Ao retornar com a notícia, os irmãos não acreditam nela.
Lucia parece a configuração de uma função inferior. Em Tipos Psicológicos, Jung nos brinda com as quatro funções de adaptação do ego, sendo que todos nós desenvolvemos uma em especial, em detrimento das outras – é a chamada função principal. A função oposta a essa (em um intuitivo será a sensação, em um pensador será o sentimento, por exemplo), Jung denominou de função inferior.
A função inferior é a quarta função, a menos desenvolvida das quatro. Nos contos de fadas a vemos na figura do Tolo. No filme, Lucia não é tola, é só a caçula, mas nos contos o caçula também pode representar a base arquetípica da função inferior.
A função principal se constrói na primeira metade da vida humana servindo à adaptação coletiva. É uma tendência natural nossa, para se fazer sempre aquilo que sai melhor e negligenciar o outro lado. Essa perspectiva unilateral, sem dúvida, aos poucos formará a função principal, que é aquela função com a qual as pessoas se adaptam às necessidades coletivas.
Mas com o tempo precisamos olhar para aquilo que não desenvolvemos e que se encontra na função inferior. Essa função é a que traz a renovação, e Lucia é quem faz esse papel. Nossa função inferior mostra aquilo que não valorizamos e que desprezamos em nós mesmos. Lucia é desacreditada, mas ela tem força para acreditar no inconsciente e se arriscar.
As crianças se encontram em uma situação difícil, a de guerra. Encontrar o guará roupa e o reino de Nárnia pode ser uma forma de fugir da realidade difícil e dolorosa em que se encontram. Em épocas de crise, tanto coletivas quanto individuais, acontece esse movimento natural, que é o da regressão da libido.
Pode ocorrer em forma de fuga da realidade de um lado negativo, mas também como forma de buscar algo no inconsciente que está fazendo falta, e que é necessário resgatar.
As crianças então em Nárnia descobrem uma profecia narniana que diz que quando dois filhos de Adão e duas filhas de Eva aparecerem e se tornarem reis de Nárnia, o governo da Feiticeira irá terminar. Aqui vemos uma compensação. As crianças são na consciência pobres e estão sem seus pais, mas no inconsciente eles buscam a forma de serem reis e heróis. Vemos a partir daqui imagens arquetípicas interessantes e que misturam aspectos pagãos e cristãos ao mesmo tempo.
Fauno, por exemplo, cujo nome vem do latim Faunus, “favorável”, ou também de Fatuus, “destino” ou ainda “profeta”, é um ente que vem da mitologia romana. No mito ele era um rei de Lácio que foi transmutado em deus e, a seguir, sofreu diversas modificações e também sincretismo com seres da religião grega ou mesmo da própria romana. Foi sincretizado com Pã e com Silvano.
No filme se trata de uma criatura que se assemelha aos sátiros gregos, possuíam um corpo meio humano, meio bode. Eram semideuses e, portanto, mortais, porém tinham vida longa. Eram intermediários entre os animais, representando os instintos – neste caso o bode – e as divindades.
Costumavam, assim como Fauno em Roma e Pã na Grécia, tocar flauta atividade induz a um estado de sono semelhante a um transe, quando tocada muito alto. E é isso que Tmnuz faz com Lucia.
O fato de encontrar um fauno pode significar um encontro novamente com um aspecto que faz ligação com os instintos perdidos. É Tumnuz que avisa Lúcia sobre a feiticeira e a profecia. Ele faz o papel de mensageiro.
Os irmãos conhecem a Feiticeira Branca, que se assemelha muito com a Rainha da Neve do conto homônimo de Hans Christian Andersen.
O conto trata da luta entre o bem e o mal, da luta entre as trevas da razão fria e o calor do sentimento humano. No conto a rainha sequestra o menino Kai e sua irmã precisa resgatá-lo.
No filme a Rainha seduz o menino Edmundo e o leva para seu reino gelado, assim como no conto. Seus irmãos o salvam e nesse tempo o inverno vai aos poucos se desfazendo.
O autor deve ter usado esse conto também como referência para mostrar nossa luta eterna entre os opostos em nós. Nossa mente lógica e racional muitas vezes exclui os sentimentos e a valorização do outro. Tanto o fauno quanto a Rainha são imagens de um passado nosso pagão.
Primeiramente ele é um leão. O leão é o rei das selvas e símbolo da realeza. Ele é o símbolo arquetípico do rei na alquimia, mas que deve morrer. Um símbolo que deve ser enfrentado. O rei é o símbolo da manifestação do Self na consciência coletiva e é um símbolo que se desgasta. O rei ou chefe incorpora um princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico de toda a nação.
O rei representa o princípio divino na sua forma mais visível, é sua encarnação e sua moradia. Mas esse símbolo tem necessidade de renovação constante, de compreensão e contato, pois, de outro modo, corre o perigo de se tornar uma fórmula morta.
O leão representa o lado terreno do Rei, pois ao morrer o rei vai para o interior da terra, para o reino do leão e lá vai ser renovado. Ele precisa transformar seu principio do poder encarando o Leão.
Aslam, como rei está doente e fraco (não consegue superar a feiticeira). Ele se oferece em troca de Edmundo para ser sacrificado na Mesa de Pedra, local onde os traidores são entregues à Feiticeira para sacrifício.
A Feiticeira parece encarnar o principio do mal. Na simbologia cristã o mal entrou pela mulher (Eva) e depois houve salvação por meio dela (Maria). No filme o mal em Narnia vem pela Rainha e encontra a salvação graças a Lucia, que encontra o reino.
O feminino está mais próximo ao mal em nossa sociedade patriarcal judaico-cristã, por isso nos contos de fadas como João e Maria, as meninas são mais astutas em relação à bruxa. A consciência patriarcal costuma excluir o mal em detrimento da perfeição. A consciência matriarcal inclui o mal, não há separação, é Eros.
Narnia e Aslam precisam das crianças, eles precisam de um equilíbrio entre essas duas energias. Feminino (Rainha) e masculino (Aslam).
Aslam sabe que precisa morrer, se sacrificar. Significa que nós precisamos, em prol do nosso desenvolvimento, sacrificar nosso leão, nossos desejos, paixões, raivas e cobiças pautadas no ego.
Então, com a ajuda do grande e poderoso Aslam ressurgido e renascido (aqui uma alusão às mitologias onde o deus morre e renasce, como Dioniso, Mitra, Horus e Jesus), os irmãos enfrentam a terrível feiticeira e trazem a paz de volta à Nárnia e a todos os que nela habitam.
Com a vitória, os quatro irmãos são coroados reis e rainhas de Nárnia. Eles governam por muitos anos, iniciando a Época de Ouro. Os quatro irmãos recebem os títulos de: Grande Rei Pedro, o Magnífico; Rei Edmundo, O Justo; Rainha Lucia, A Destemida; E Rainha Suzana, A Gentil.
Eles então reinam durante vários e vários anos, em um período de paz e prosperidade nunca antes vivido por Nárnia. Tal período foi considerado a “Era de Ouro”, ou o “Apogeu” de Nárnia.
Entretanto, o reinado dos quatro irmãos acaba e eles acabam de volta ao nosso mundo, acidentalmente. Como o tempo em Nárnia e no nosso mundo são paralelos e correm numa velocidade própria, eles voltam com a mesma idade e exatamente no mesmo dia em que tinham entrado no guarda-roupa, como se tivesse de fato se passado apenas alguns minutos desde que entraram, o que para os irmãos pareciam muitos anos. Ninguém ficou sabendo das aventuras deles em Nárnia, a não ser o professor que os hospedou.
Eles retornam a realidade para voltar depois. Aqui na volta vê-se a chamada dificuldade do regresso, quando o herói precisa retomar sua vida. Quando empreendemos uma jornada iniciática no inconsciente, temos dificuldade de retornar e aplicar aquele aprendizado na vida cotidiana, mas essa é uma jornada necessária. No processo de individuação temos que colocar a serviço do coletivo aquilo que aprendemos e nossos dons.
Os quatro irmãos ainda voltariam juntos mais uma vez a Nárnia, conforme é narrado no conto O Príncipe Caspian. Mas essa é uma outra história.