Cartas, por Lúcia Costa

Por Lúcia Costa

Cartas

Tico das Cartas era um político. Eleito prefeito da pequena cidade de Rio dos Trouxas, só comparecia eventualmente à prefeitura; gostava mesmo de despachar era lá Cabaré de Ritinha, onde mantinha um gabinete na mesa central do bar. Contam que, certa vez, recebeu o bispo por lá e entre goles e quengas discutiram a reforma da igreja.

Tico tinha uma outra paixão que lhe rendera o sobrenome: o jogo de baralho. Desde onze anos de idade, quando ainda morava em uma estreita faixa de terra com os pais e mais meia-dúzia de irmãos, jogava com os meninos que trabalhavam junto a ele apanhando algodão. O dia no campo colhendo o produto, à noite, sentados em sacos abarrotadas de algodão, entregavam-se aos naipes.

Sua vida mudou. Conseguiu se eleger vereador graças ao discurso em defesa dos agricultores, tornou-se prefeito.

O gosto pelo baralho foi ficando primoroso. Era um vício. Blefar era um orgasmo. As cartas construíam os degraus que lhe levavam às nuvens.

Casado com a bela Tereza – moça fina, educada para ser esposa, temente ao marido e à igreja – moravam em uma enorme casa verde com janelas vermelhas enormes.

O baralho lhe rendia sorte, ganhou muito dinheiro, conseguiu, ele mesmo, financiar sua campanha política, comprou terra, gado. Montou um açougue que vendia carne para toda a região de Rio dos Trouxas.

Mas Tico se excedia com dinheiro. Alugava o único clube da cidade e promovia jogatinas regadas a whisky e mulheres. Chegou a financiar um encontro estadual de quengas lá no cabaré de Ritinha. Apostava tudo na mesa de baralho e já não contava com a mesma sorte. Suas despesas excediam seus lucros. Estava em crise.
Tereza casou-se apaixonada. Amava os negros olhos de Tico, a fala firme, a forma como ficava ereto. Desiludiu-se; sabia das excentricidades do marido. Preferia a voz do seu próprio silêncio. Mal dirigia a palavra àquele homem. Mal se movia dentro de casa. Mal seus olhos se alegravam.

Tico não se reconhecia mais enquanto rei das cartas; perdia a cada dia, até chegar ao ponto de possuir somente o titulo de prefeito e a esposa. Sentia-se desanimado. Procurou rezas para lhe afastar o azar. Nada adiantava; não podia sentar em uma mesa que já perdia na estreia.

Em Rio dos Trouxas, tinha um coveiro, Tonho, que, há algum tempo, vinha crescendo no jogo. Admirava o prefeito. Aprendeu com Tico as manhas e as manias de um bom jogador. Estava já para largar a profissão; jogar lhe rendia um bom dinheiro. Acreditava que podia ficar rico através das cartas.

Um dia, Tonho resolveu jogar contra seu mestre. Tico, ressabiado e já sabendo da fama crescente de bom jogador que o rapaz carregava, procurou se desvencilhar, mas Tonho insistiu e ele não era homem de correr de mesa. Aceitou, mas não tinha dinheiro para apostar. Tonho o pressionou: existe triunfo sem troféu? Tico apostou a esposa que ganharia aquela partida. Tonho não tinha ninguém até então.

Tereza sentiu-se humilhada diante à cidade. Todos, rindo, gargalhando, olhavam-na sair da grande casa. Tico embrenhou-se pelo mato, enquanto Tonho a esperava, calado, cabisbaixo. Levou para casa o seu troféu de olhos tristes. Deu-lhe seu jardim, sua cozinha, sua sala, sua cama.

Tonho abandonou as cartas, preferiu continuar enterrando germes obsoletos. Tereza, pela manhã, abre as pequenas janelas verdes da casa vermelha e acende um sorriso para toda a Rio dos Trouxas.







É professora de Língua Portuguesa, mora em Patos, PB e escreve poemas, contos, crônicas…