Anunciado como novidade, estreou em 28 de dezembro, na Netflix, o aguardado episódio interativo de Black Mirror, “Bandersnatch”, cuja maior “inovação” em relação aos demais episódios da série é um formato já explorado à exaustão em jogos de videogame e, inclusive, no programa da TV aberta brasileira “Você decide”, sucesso nos anos 90. No mais recente capítulo da série inglesa, são cinco opções diferentes de final para a trama, à escolha do telespectador. Deixando de lado a discussão sobre a qualidade dramatúrgica do enredo criado por Charlie Brooker, a inovação – ou ausência dela – em Bandersnatch ilustra bem um pensamento sobre a série: Black Mirror é, como diria Cazuza e como bem classificou o crítico de cinema Matheus Fiore no site “Plano aberto”, um “Museu de grandes novidades”.
Desde que estreou na TV britânica e, principalmente depois de mobilizar telespectadores do mundo todo ao ter seus direitos de exibição adquiridos pela gigante do streaming, Black Mirror vêm pautando discussões sobre os avanços da tecnologia e os seus reflexos sobre a sociedade atual. Com episódios independentes que completam uma antologia e tramas que remontam à ficção científica, a série imagina um futuro – ou às vezes presente – em que diferentes inovações tecnológicas permitem que o ser-humano dê vazão aos seus desejos mais obscuros e inconfessáveis. Na série é possível, por exemplo, clonar um ente querido já falecido, ou então transferir a própria consciência para uma realidade virtual após a morte; situações que, aos olhos de muitos, parecem cada vez mais próximas de se tornarem realidade. A plateia, num geral, trata Black Mirror como uma série que reflete sobre indagações novas, surgidas no seio desta sociedade cada vez mais conectada às telas negras de seus smartphones. Mas será que as questões levantadas por Black Mirror são tão novas assim? Será que se tirássemos o elemento tecnologia da série, as questões não seriam as mesmas que vêm permeando a vida em sociedade ao longo de vários séculos?
Citando exemplos, na realidade recriada do primeiro episódio da terceira temporada, intitulado “Queda livre” (Nosedive), as pessoas usam implantes oculares e dispositivos móveis para classificar, com uma nota que varia de uma a cinco estrelas, àqueles com quem interagem pessoalmente ou online; e a soma da nota de cada indivíduo neste sistema se converte automaticamente em status socioeconômico. Em suma, o episódio coloca uma lente de aumento e adiciona elementos de ficção científica sobre a questão do espaço cada vez maior que as redes sociais ocupam na rotina de homens e mulheres de todo o mundo. As redes sociais são sim um assunto novo, mas as razões do seu sucesso não. Basicamente, o que as pessoas procuram no Facebook, no Twitter, no Instagram, ou no Snapchat, é sentirem-se parte de uma comunidade, aplacar a solidão, ou ainda adquirirem notoriedade. Em maior ou menor grau, todo ser-humano quer ser visto, compreendido e admirado, e isso desde que o mundo é mundo. Muito antes do surgimento das redes sociais, as pessoas já pagavam caro para ter o rosto estampado nas colunas sociais de jornais impressos ou nas páginas de revistas de fofoca. Tampouco a ilusão de perfeição e felicidade vendida hoje nas redes sociais é novidade. Não é preciso postar uma selfie cheia de filtros e retoques no instagram para que estejamos editando nossa própria imagem. Quando escolhemos a nossa melhor roupa e maquiamos as imperfeições do nosso rosto para sair de casa e participar de uma entrevista de emprego, de uma reunião de amigos, ou de um encontro romântico, já estamos nos editando. Ou ainda quando escondemos dos nossos amigos ou parentes as dores e incertezas que nos afligem; isso é tentar controlar a imagem que o outro faz de nós mesmos. Num geral, queremos parecer mais felizes, saudáveis e realizados do que realmente estamos.
Odiados pela nação (Hated in the nation), sexto e último episódio da temporada 3, joga luz sobre a questão do linchamento moral promovido na internet. (Cuidado, spoiler!) Na trama, em um “Jogo de Consequências” nas redes sociais, as pessoas linkam o nome de qualquer pessoa à hashtag #MortePara, e a pessoa mais citada é assassinada de maneira misteriosa. O assunto é atual há bastante tempo. Desde muito antes da época da Santa Inquisição, as pessoas praticam o hábito de apontarem o dedo indicador umas às outras. A única diferença para os dias atuais é que a arena de acusações e maledicências é hoje um campo minado de emojis e gifs.
Em “Volto já” (Be right back) – quarto episódio da segunda temporada -, por meio de uma nova tecnologia, a personagem Martha adquire um androide que replica quase à perfeição a aparência física, a voz e o comportamento de Ash, seu marido falecido dias antes.
(Cuidado, spoiler!) Mas o androide não consegue reproduzir minúcias da personalidade de Ash e a conclusão a que a personagem chega ao final da história é a de que nem a tecnologia mais perfeita deste mundo é capaz de trazer de volta alguém que se foi. A inconformidade diante da perda de um ente querido é um problema ancestral e universal e muitas são as maneiras que encontramos para tentar aplacar essa dor. Você já deve ter percebido um avô ou uma avó tentando enxergar no neto a continuação do filho ou da filha que se foi, para um dia perceber que cada indivíduo é único e insubstituível.
Para além das tramas engenhosas envolvendo prováveis novas tecnologias, a maior parte dos episódios de Black Mirror trata, sobretudo, sobre questões humanas muito profundas, que são tão atuais hoje quanto eram há 30 ou 50 anos, no que é fácil concluir que, se exibida nos anos 1980 ou 1990 – considerando que a série pertence à categoria de ficção científica – Black Mirror causaria o mesmo impacto que causa hoje entre os telespectadores. Também é fácil concluir que o estarrecimento da audiência diante das situações apresentadas pela série é um indicativo de que o homem continua a se espantar com os aspectos mais sombrios da própria natureza.
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