“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
(Fernando Pessoa)
Assim como existem bloqueadores da dor física, existem relatos de bloqueadores da dor emocional. Muitos já devem ter ouvido falar sobre ir ao hospital do fogo selvagem para perceber que seus problemas não devem ser tão graves assim. Há também uma foto de uma criança africana que circula na internet, ela parece beber urina de uma vaca. Cenas chocantes que mostram a realidade na qual estão inseridas outras pessoas podem ter um efeito avassalador quando conseguimos nos colocar no lugar do outro e, ao voltar “ao nosso mundo” percebermos que talvez estejamos voltados demais para nós mesmos – o que nunca é bom.
A dor de cada um de nós é sempre a maior de todas, porque é a única dor que sentimos; entretanto acredito que olhar para fora possa nos dar força para enfrentar obstáculos ao longo do caminho. Enxergar o outro e tentar imaginar a dor daquele que não sou eu pode ser uma grande motivação – não para bloquear a sua dor – mas para enfrentá-la. Toda dor passa. Não há nada que dure para sempre.
Aos vinte e dois anos eu já estava no quinto ano de faculdade e estagiava dentro do Hospital Celso Pierro, em Campinas. Naquela época eu era uma jovem típica de vinte e dois anos, achava que sabia tudo, achava que já tinha nas mãos o script da minha vida pessoal e profissional. Tenho saudade daquela certeza que eu tinha sobre tudo, todavia, tenho uma vontade imensa de voltar no tempo, dizer umas verdades àquela presunçosa e rir da cara dela ao dizer: “você nem imagina o que te espera”. Voltando ao meu estágio, depois de muita luta acadêmica, consegui uma das duas vagas para estagiar na enfermaria de moléstias infectocontagiosas e lá eu cruzei com um dos seres humanos mais espetaculares que Limeira “pariu”. Ela era na época residente na ala e um dia fez uma das tantas boas ações que carrega no currículo quando me convidou para ir com ela levar um papel qualquer no setor onde eram realizadas as autópsias no hospital.
Eu era muito ligada a ela porque éramos da mesma cidade e estávamos no imenso hospital da PUCCampinas, então era como se eu tivesse uma irmã mais velha lá dentro. Aprendi muita coisa naquele ano, porém nada que se compare àquele dia quando entrei naquele quarto e vi o paciente que eu havia atendido um dia antes todo aberto e com seus órgãos sendo retirados; ali eu mudei para sempre. Havíamos apelidado-o carinhosamente de Tião Gavião. Ele costumava morar ou na enfermaria, ou na cadeia do São Bernando onde eu também estagiava. Eu conhecia o Tião e o via feliz quando era internado “porque tinha uma cama só para ele e comia super bem”. Na cadeia era diferente! Tudo é uma questão de referência. Tião morreu por complicações pulmonares, era soropositivo e não tinha a menor motivação para se cuidar. O pulmão dele estava tão comprometido que a médica ao realizar a autópsia usava um tipo de concha para retirar “aquilo”. Enquanto a Dra. Cau e a amiga médica que manuseava a concha conversavam eu pensei: “Eu sou nada”. E desde aquele dia eu comecei a sonhar. Perdi as certezas, todas elas.
Aquele dia me deu a exata noção de que o nosso corpo físico não é nada, e que há que se ter sempre a busca, a motivação para ser feliz, porque tudo passa, e passa mesmo. Não é preciso assistir a uma autópsia, é preciso viver sabendo que elas existem.
Dedico esse texto e a minha eterna gratidão, amizade e afeto á Doutora Claudia Barros Bernardi, médica infectologista que protagonizou essa história junto com o Tião. Ela atualmente está em Luanda trabalhando, distribuindo amor e acordando menininhas dormentes como eu fui um dia.
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