Há alguns dias, presenciei uma cena comovente: dois irmãos, ambos idosos, conversavam. Um deles, o mais velho, havia perdido a esposa. Mesmo que seu falecimento não tenha vindo de surpresa, já que também era idosa e já estava doente há longo tempo, o marido tinha dificuldade de aceitar o ocorrido. E esse era o teor da conversa: o irmão mais novo consolava o mais velho e tentava ajudá-lo a aceitar a morte da esposa. Em certo momento, os dois se calaram e o irmão mais velho começou a chorar, ali, à minha frente, um choro profundo e sincero. O irmão mais novo o abraçou e lá ficaram, entrelaçados por um instante. De repente, começaram a falar do passado, das brigas que tiveram, das dores de cabeça que o mais novo havia dado aos pais e de muitas outras coisas. E falaram das aventuras e dos amores vividos e de Gertrude, uma moça na qual ambos se apaixonaram na juventude e que fez com que os se tornassem rivais e não se falassem por um tempo. No desenrolar da conversa, começaram a rir das recordações e das loucuras vividas, até que o irmão mais velho olhou sério para o mais novo, colocou a mão em seu ombro e agradeceu por tudo. Marcante para mim foi quando ele disse que “sem você, meu irmão, eu não suportaria essa dor que agora sinto e não teria mais coragem de continuar”. E a resposta do irmão também foi interessante: “Somos uma família. E família existe é para isso”.
Foi uma dessas cenas que mexem com a gente. Mexeu tanto comigo que passei os últimos dias refletindo sobre o tema família, sobre o bem que ela nos faz, mas também sobre o mal e o sofrimento que ela nos pode trazer. Bendita família, maldita família…
Bendita é a família quando nos abriga e ampara, sendo uma ilha no oceano da vida, onde encontramos aconchego e solidariedade, maternidade, paternidade e irmandade. Ela é bendita quando nos abraça nos momentos difíceis, quando nos conhece bem e nos aceita como somos. E foi essa bendição familiar que me comoveu na conversa dos dois irmãos e foi ali que vi o sentido saudável e positivo da família que, sim, é para isso que existe.
Tanto faz se grande ou pequena, rica ou pobre, só com pai ou só com mãe ou mesmo sem pai e sem mãe, tanto faz a constelação: toda família é bendita quando consegue ser família de verdade, mais que uma casta ou linhagem, unida não somente pelo sangue, mas que vai além disso, servindo de plataforma para crescermos e nos fortalecermos num ambiente de amor e respeito.
Devemos nos sentir abençoados e sortudos quando temos uma família assim, que nos acolhe sem impor ou cobrar nada, que nos ama e aceita incondicionalmente, que nos dá o sentimento de não estarmos sozinhos neste mundo e que sempre nos inspira e nos dá coragem para continuar, por mais dura que seja a situação que atravessamos.
Ao ver aqueles dois irmãos tão próximos e amigos, aquela irmandade verdadeira, senti o desejo profundo de que todos nós tivéssemos essa sorte, que todos nós tivéssemos uma boa família, uma bendita família. Feliz e comovido, desejei isso de coração, mas, ao mesmo tempo, triste e pensativo, constatei que isso nem sempre é assim.
Muitos não se sentem assim abençoados, pelo contrário: sentem-se mal-aventurados, desafortunados, sozinhos nos momentos difíceis no oceano da vida por não terem uma ilha de aconchego, nem de solidariedade, nem de maternidade, nem de paternidade e muito menos de irmandade, apesar de terem uma família, uma maldita família, desunida e egoísta, que impõe e cobra, que castiga e rejeita ao invés de amparar ou, ainda pior, fica indiferente ao seu sofrimento.
Maldita é a família quando nos torna malditosos, quando nos desencoraja e faz com que nos sintamos sós, é a família que nos maltrata, que nos violenta, que não consegue ser mais que uma casta ou linhagem, que tem o mesmo sangue, mas só isso, que também nos faz crescer, mas pela dor e pela decepção e não pelo respeito e pelo amor. A família maldita não enlaça, não incentiva, não constrói, apenas destrói e inibe nosso desenvolvimento e nossa liberdade de sermos quem realmente somos.
Maldita é a família quando é conturbada, perdida em si mesma e fazendo com que nos sintamos igualmente perdidos, nos endurecendo ao invés de nos fortalecer, incutindo em nós valores errados e uma frustração que, por mais que nos libertemos, nos acompanha por toda a vida, nos deixando tristes sempre que pensamos em tudo que foi, mas não deveria ter sido, e em tudo que deveria ter sido, mas nunca foi.
Tanto faz se bendita ou maldita, não existe família perfeita. Mesmo em uma família bendita, há brigas, desentendimentos e sofrimento, mas a diferença é que nela também há apoio e resgate dos laços primeiros, enquanto que, numa família maldita, os únicos denominadores comuns são os elos biológicos e o sofrimento de todos, já que ninguém pode realmente ser feliz em uma família assim.
O problema é que não podemos escolher em que família nascemos, não podemos decidir se nossa família é bendita ou maldita, se nos faz bem ou nos faz sofrer. Ao nascermos, não podemos escolher se teremos pais que de tudo farão para que sejamos independentes, fortes e felizes ou se eles apenas se preocuparão com a própria sorte e as próprias animosidades, por mais mesquinhas que sejam. Não podemos escolher se teremos pais verdadeiros ou meros genitores e se nossos irmãos e irmãs estarão realmente ao nosso lado para o que der e vier ou se eles somente vão cobrar aquilo que poderia vir de nós.
Não, não podemos escolher. Família bendita ou maldita é questão de sorte, de destino, de onde a cegonha nos larga quando entramos neste mundo. E assim, só nos resta aceitar, com gratidão se for bendita ou com condescendência se for maldita, prosseguindo nosso caminho e levando conosco o melhor que pudermos levar do seio familiar, mesmo que esse seio seja falso, de silicone ou borracha de pneu, já que de nada adianta lutar contra o que não podemos mudar.
Quando temos a sorte de ter uma família bendita, devemos simplesmente ser gratos pelo destino ter sido complacente conosco. Já quando não temos essa sorte, o caminho é aceitar a dor de ter uma família maldita, buscando então alternativas, buscando pessoas que não tenham o mesmo sangue nosso, mas que sejam “madeira da mesma árvore” ou “farinha do mesmo saco”, que nos aceitem, nos acolham e nos fortaleçam, dando-nos o amor e o respeito que a família não pôde ou não quis nos dar.