Tropeçar faz parte do processo de avançar nas etapas da vida. Desde os primeiros ensaios para caminhar sobre as duas pernas, aprendemos que, sem coragem para encarar a dureza do chão, não iremos muito longe. Tropeçamos, caímos, choramos e voltamos a tentar. No momento em que decidimos dar o próximo passo, o medo da queda já foi esquecido. A dor é tempero do crescimento. O entusiasmo também. O excesso dos dois é o caos, o sofrimento e a solidão. Os destemperados aprenderão, cedo ou tarde, que seu transtorno invisível é seu inferno particular e de mais ninguém.
O humor é como uma paleta de cores a transformar o pano de fundo de nossa vida. Acontecimentos felizes produzem sensações agradáveis: vontade de compartilhar a vida, leveza, presença de pensamentos positivos e pró-ativos; é como se o mundo ganhasse novas cores, mais vivas e vibrantes. Episódios tristes nos remetem ao oposto disso tudo: queremos nos encolher, buscamos apenas a companhia daqueles que nos são muito próximos, o coração fica pesado, os pensamentos evoluem em câmera lenta, perdemos a fé; é como se todas as cores perdessem o viço e a vivacidade. Existe uma lógica em tudo isso. Todos nós estamos sujeitos às oscilações da vida; e reagiremos melhor ou pior a depender de fatores internos e externos, que utilizaremos como recursos para nos reequilibrar.
Para quem sofre de Transtorno Bipolar, entretanto, essa lógica não passa de ficção. Esse Transtorno Afetivo é uma doença mental e está entre as dez que mais afastam os brasileiros do trabalho e do convívio social, tamanho impacto que causam em suas rotinas. Até que seja diagnosticado corretamente o paciente, em geral, já terá passado por inúmeros profissionais de saúde; já sentiu dores por todo o corpo; já sofreu com intermináveis noites insones; perdeu empregos, amizades e arruinou relacionamentos amorosos; pensou em morrer; tentou morrer. O Transtorno Bipolar ocupa o terceiro lugar na lista dos transtornos psiquiátricos, depois da depressão e da esquizofrenia, conforme levantamento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em parceria com o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde (OMS). E, mesmo sendo tão frequente, é extremamente desconhecido e difícil de detectar.
A Bipolaridade pode apresentar-se na forma mais clássica, na qual as oscilações de humor ocorrem em momentos alternados. A pessoa passa por períodos de depressão, durante os quais têm pouca ou nenhuma disposição para atender aos compromissos; tudo fica excessivamente cansativo e custoso; a concentração é prejudicada; a memória falha; o desejo de viver fica perdido em algum lugar. Aos poucos, a fase depressiva vai esmaecendo, perdendo a força e deixando como resultado uma pessoa extremamente frágil do ponto de vista emocional e vulnerável às situações externas. Pode haver, nesse caso, um período mais estável, ou não. Na sequência, o Bipolar é atingido por uma onda de euforia; o pensamento fica acelerado; a pessoa é tomada por um sentimento de poder e pela necessidade de fazer muitas coisas ao mesmo tempo; diminuição da necessidade de sono, ideias de grandiosidade e comportamentos desinibidos e pouco críticos, que podem resultar em gastos excessivos, por exemplo. Soma-se a essa confusão estabelecida, o possível surgimento de agressividade, que tanto pode ser consigo mesmo, quanto com as pessoas mais próximas. Muito do que se faz nessa fase, o Bipolar nem sequer sonharia em fazer no estado normal de humor.
Além da forma clássica, a Bipolaridade também pode apresentar-se na forma de episódios mistos de depressão e euforia. O bipolar, neste caso, pode apresentar a agitação motora e mental de uma fase de humor elevado e, ao mesmo, tempo expressar sentimentos de falta de esperança, de culpa ou de baixa auto-estima, como numa fase de humor deprimido. Ele também pode estar eufórico agora e, literalmente cinco minutos depois, estar deprimido e chorando.
O desencadeamento de uma crise não tem relação com motivações ou situações específicas. O detonador pode estar atrelado ao stress, tanto positivo quanto negativo: ser promovido ou demitido; apaixonar-se ou romper um relacionamento, podem provocar o mesmo impacto devastador. Essa imprevisibilidade vai desestruturando de tal forma a vida, que muitas vezes a pessoa vê-se em situações de perda terríveis; precisando recomeçar do zero, muitas e muitas vezes.
Uma das principais evidências de que a doença está relacionada às reações químicas do cérebro é que os remédios, quando acertadas a droga e a dosagem, dão resultado. Entretanto, o mecanismo de funcionamento da doença é um processo extremamente complexo. Ainda não há certezas sobre neurotransmissores ou reações químicas que estejam envolvidas no desencadeamento da doença. O que se sabe é que alterações da serotonina e da noradrenalina cerebrais estão relacionadas à depressão e a dopamina é o neurotransmissor mais relacionado aos episódios de mania. E que, além do tratamento medicamentoso, o Bipolar precisa de acompanhamento Psicológico e apoio da família.
O diagnóstico correto é a única “luz no fim do túnel” para quem sofre de Transtorno Bipolar. É preciso que haja o envolvimento comprometido dos familiares e amigos mais próximos para que o paciente encontre maneiras de administrar a doença. Uma vez diagnosticado e tratado, ele terá de volta a capacidade de viver uma vida equilibrada em todos os aspectos. Em geral, a procura por ajuda ocorre nos períodos de depressão, nos quais o sofrimento é mais evidente. Nas fases de euforia, raramente alguém procura por socorro, já que aquele estado de energia intensa traz uma felicidade ilusória. No entanto, por mais agradável que pareça, é uma doença grave, por conta dos riscos a que a pessoa se expõe, como a impulsividade que leva a comportamento sexual desinibido; envolvimento com drogas; comportamentos compulsivos, entre outros atos impensados.
Embora a doença apareça mais frequentemente no fim da adolescência ou início da vida adulta, crianças e pré-adolescentes também podem sofrer com esse transtorno. Nos EUA, o número de diagnósticos de bipolaridade entre crianças e adolescentes cresceu 40 vezes na última década. A hipótese para esse aumento é a maior conscientização de médicos sobre o transtorno ou ainda um possível excesso de diagnóstico, em que uma criança mal-humorada pode ser tratada como doente.
Além de ser “invisível”, a Bipolaridade é uma doença incurável, assim como o Diabetes ou a Hipertensão; só que ao contrário dessas enfermidades físicas, a Bipolaridade vem carregada de preconceito, acarretando ao portador dessa síndrome uma situação de grave solidão. Ser Bipolar é um desafio diário, tanto para a compreensão pessoal da doença, quanto para a dificuldade de compartilhar o que sente. A grande maioria guarda para si o “segredo de ser diferente”. A grande maioria tropeça, cai e levanta sozinho. A grande maioria precisa apenas do que todos nós precisamos: sermos aceitos com nossas belezas e horrores; termos o direito à tentativa de fazer melhor no próximo dia; termos acolhidas as nossas dores e compartilhadas nossas alegrias. É muito? É pouco? Não sei… Apenas diria que é justo, direito e necessário.
Ana Macarini
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