Em tempos de seriados eternos, de livros lançados em sagas intermináveis, de abordagens obvias ou repetitivas, Black Mirror surpreende pela sagacidade de ser uma série breve, limpa e perturbadora. Não é que estes outros estilos não sejam bons, não nos agradem e não tenham o seu mérito, mas existem diferenças entre a cultura do entretenimento meramente, as produções “cult” e propostas que consigam superar essas “divisões” de estilo e público. Há exemplos dessas produções em todas as formas de arte. Não precisa necessariamente existir uma dicotomia entre o que é para a “massa” por ser capaz de divertir, distrair e agradar e o que é para o público “culto” por engendrar reflexões, carregar referências, ter qualidade e originalidade técnica. Quanto mais uma produção cultural ou artística, de qualquer gênero, seja capaz de alcançar públicos distintos e plantar suas “sementinhas”, a meu ver, melhor é a produção. Colocaria Black Mirror entre essas produções que superam as dicotomias e, pelo formato e conteúdo, se abre ao acesso da diversidade de modos de ser que a nossa época compreende, oferecendo quase que democraticamente a todos o direito de serem perturbados em suas acomodações.
Black Mirror não é um “lançamento do momento”, foi estreada em 2012 na Inglaterra com a proposta de um formato pouco comum às séries atuais: apenas 2 temporadas com 3 episódios e um episódio extemporâneo (especial de natal), cada episódio uma história diferente, sendo que a única conexão que elas têm entre si é algo do estilo e da natureza temática. Isto significa que uma pessoa pode ver qualquer episódio da série, sem precisar ter visto os outros. Todavia, embora não necessariamente no Brasil, a série ganhou uma proporção considerável de fãs, e é possível que uma nova temporada seja exibida pela Netflix ainda em 2016. A mencionada proposta do formato dos episódios é inspirada em “The Twilight Zone” (Além da Imaginação), que ficou conhecido nos anos 50 e cujos episódios podem ser comparados a pequenos contos, que através da ficção abordam temáticas da realidade, recurso comum em épocas de censura, mas que encontra sua força para além dessa condição específica.
Assistindo a série também me lembrei dos contos de Borges e da consideração do autor de que a boa ficção não precisa de infinitas páginas para ser desenvolvida, que o que há para ser dito pode o ser, e muito bem dito, em poucas páginas: “Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma idéia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário.”. Embora também seja fã de longas sagas, percebo nesta declaração uma coerência com uma realidade “fast”, que desconfiada das novidades, só paga com o tempo o que tem como garantia um retorno satisfatório. Apropriando o que Borges diz sobre às narrativas literárias ao formato audiovisual de Black Mirror e afins, temos que o feito criativo em formato breve se concretiza, se imprime na realidade, sem acorrentar-se às continuações. Cumpre seu efeito no abrupto, abrindo possibilidades de desdobramentos criativos ao expectador pelo contato e não pela extensão.
Penso também na potência da ficção para refletir e tocar em questões atuais, em muitos casos, com mais impacto do que os discursos diretos. Assim, Black Mirror nos surpreende com uma proposta inusitada, atual, potente e capaz de alcançar qualquer público com a sua linguagem. A tecnologia pode ser equivocamente confundida como a protagonista dessa série. Mas não há em nenhuma de suas histórias, diferentemente de algumas ficções mais apelativas, nenhuma atuação de uma tecnologia que adquire existência própria e atua independentemente do ser humano. Há seres humanos fazendo uso das tecnologias e de outros seres humanos, de tal forma que alcançam proporções absurdas por um lado, e absolutamente familiares se considerarmos a realidade na qual vivemos por outro. É esse o principal trunfo da série no que diz respeito à sua recepção: o absurdo e a realidade se chocam num encontro diante do expectador. Não há escapatória para o desconforto deixado pelos episódios, não há como não refletir sobre a realidade, como não parar diante dela durante os minutos em que a narrativa audiovisual se desenvolve e ao menos alguns minutos depois, absorvidos pela perplexidade de estar sob efeito de um terror que não nos mete medo pela sua impossibilidade, por ser sobrenatural, mas por ser supernatural, possível e, de certa forma, apenas uma hipérbole daquilo que já vivemos. O terror em Black Mirror é um terror da realidade vivida, que não precisa de membros decepados, figuras hediondas ou espectros para causar pavor. O pavor está em constatar que tudo aquilo que nos angustia e atemoriza diante da tela, é a história radicalizada da nossa vida diante das telas.
Cada episódio da série renderia uma análise longa e aprofundada, pela quantidade de temas e complexidade com que são abordados no curto espaço de cerca de uma hora. O uso do humano pelo humano, o uso das tecnologias, a alienação política, os sistemas de punição, as relações íntimas, a dificuldade contemporânea em aceitar as limitações intrínsecas da existência humana tentando supri-las através avanços científicos, a subversão dos sonhos, queda de utopias, ausência de empatia, dentre outras questões, são abordadas pela série com um misto caótico de humor negro, suspense e absurdo compondo uma ficção de muita qualidade.
Fica em comum do gosto amargo e sagaz deixado pelas histórias a impressão de que o avanço da tecnologia desacompanhado do avanço cultural – que este se entenda como evolução no sentido humano, do próprio ser e das suas habilidades individuais e sociais enquanto ser (não enquanto “coisa social”) – nos imerge em uma perspectiva de futuro crítica, que já pode ser visualizada em diversos desdobramentos sociais em nível global que presenciamos (precisa de exemplos?). Alienados dentro de esferas das quais não conseguimos nos desvencilhar, podemos até mesmo pensar que nos encontramos tranquilos, protegidos da crueza dessa realidade, ou prestes a vencê-la através de alguma atitude subversiva ou mesmo seguindo suas regras, mas de uma forma ou de outra, acabamos por ser engolidos por essa mesma realidade que tentamos aceitar ou ignorar.
Homens sem cultura e cheios de artifícios tecnológicos são como crianças cheias de brinquedos, mas sem orientação ou educação. Acabam por destruir tudo em seu entorno, tiranizarem umas às outras, ecoando a lógica das civilizações sem civilização. Retornamos à lei do “mais forte”, sem que tenhamos um inimigo contra o qual lutar ou um salvador ao qual recorrer. O isolamento é contraposto e intensificado pela interferência constante e imponente do “todo”, que existe apenas enquanto júri impondo modos de ser, agir ou penalidades de forma confusa e arbitrária. Nos tornamos atores do maior espetáculo de todos os tempos, que embora se repita nas figuras e tragicomédias exibidas, supera em efeitos especiais. (“Peraí!”, estou falando de Black Mirror ou da realidade?)
Embora Black Mirror não seja a primeira produção fictícia que aborde a realidade humana e social revelando o absurdo por trás de questões cotidianas banalizadas e vivenciadas de forma naturalizada até o momento em que quebramos o nosso nariz nelas, possui o mérito de trazer esse discurso à contemporaneidade utilizando de todos os artifícios que esta compreende, tanto em termos técnicos quanto no que diz respeito ao conteúdo. Resta saber se em seus novos episódios, a série não acabará tomando o destino de algumas de suas narrativas e personagens, como “Fifteen Million Merits” ou “The Waldo Moment”. Entendedores entenderão…
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