Eu não tolero encontrar lixo no ralo da pia da cozinha! Isso vem da minha parte que tem os pés bem plantados no chão. Ensinamentos de mãe. Não se deixa lixo no ralinho da pia da cozinha! É nojento!
Isso ficou gravado em mim feito uma tatuagem. Simplesmente não suporto. Tenho ânsia, asco mesmo. Gasto folhas e mais folhas de papel toalha para recolher lixo do ralinho da pia, porque ao que parece, todo o resto da população da minha casa não se importa com as cascas, grãos de arroz e farelos que se acumulam ali. “É só comida!” – dizem.
Não, não é comida. Era comida quando estava no prato. Depois que foi parar no ralinho da pia virou lixo, misturado com sabão, com gordura com os restos de molho. Alguém comeria os restos de comida do ralinho da pia? Claro que não! Então, não é comida. É lixo.
Meus pés plantados no chão também não me deixam levar vantagem em nada que se refira a dinheiro. Contas têm de ser divididas segundo a mais rigorosa matemática financeira. E não importa se eu só tomei uma água sem gás e todo resto da mesa bebeu vinho chileno. Se eu sentei para dividir a mesa, tenho de dividir a conta, igualmente.
Que parte sua está plantada no chão? São os ensinamentos de mãe? É a sua responsabilidade diante da vida? São seus compromissos profissionais? O trabalho? Os estudos? Qual?
No que se baseiam suas raízes? O que é inegociável? Intransferível? Insuportável?
Passo noventa e cinco por cento do tempo com a cabeça nas nuvens. Sou criativa. Se não estiver envolvida até o pescoço na criação de algo, parece que murcho, seco, sei lá… Ninguém é capaz de ser criativo se todo o seu ser estiver enraizado no chão. Simplesmente isso não é possível.
A imaginação mora nas nuvens, é do campo das ideias. Nada terreno libera nossa capacidade imaginativa. Para imaginar, sonhar, idealizar… é preciso perder um bom tanto de juízo e escondê-lo bem para que não nos encontre.
Gente distraída, esquecida, aérea é mais leve. Até a página dois. Até que a distração, o esquecimento e a cabeça oca não seja responsável por um dano irreparável. Eu tenho a cabeça nas nuvens, em circunstâncias que não deveria ter: já paguei a mesma conta duas vezes e deixei de pagar uma outra; vivo perdendo documentos e papéis importantes; esqueço datas, aniversários e compromissos sociais. Nessas horas, minhas raízes não me servem de nada, porque minhas emoções habitam os galhos mais altos, na copa, onde o céu é bem mais azul.
E enquanto minhas raízes se ocupam de ralinhos de pia e de contas divididas “fifty x fifty”, enquanto esqueço datas e contas e sabe-se mais lá o quê, meu coração batuca mais que a bateria da Portela, da Mangueira e do Salgueiro, todas juntas.
Meu coração é uma bola de fogo incandescente, inquieta e voraz. Quer amores cem por cento. Quer amar até as últimas consequências. Quer o prazer de dizer coisas indizíveis com os olhos, sem mexer um milímetro de bocas e línguas. Meu coração é fogo imenso, habitando um corpo enraizado em lembranças maternas e guiado por uma cabeça de estrelas.
Quem sabe não seja essa exatamente a beleza de seguirmos vivos por esse mundo afora… Sermos esse caldo incoerente de coisas que não se juntam espontaneamente, em busca de alguma coisa que se parece remotamente com felicidade.
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