Em um dia de primavera de 1959, a BBC encaminhou um repórter para entrevistar o psicanalista suíço Carl Gustav Jung em sua casa, nas proximidades de Zurique. A entrevista foi ao ar com o nome “Face To Face” e deveria ser profunda, mas de maneira que pudesse ser entendida por pessoas que não tivessem conhecimentos específicos da área de psicologia.
A entrevista foi um grande sucesso na época. Muitas pessoas a assistiram inclusive Wolfgang Foges, diretor da Aldus Books, que como bom admirador da psicologia moderna lamentava, na época, que apenas Freud tivesse as linhas gerais do seu trabalho conhecidas por um grande número de leitores. Na época Jung não era conhecido pelo público comum e sua leitura era considerada extremamente difícil.
Foges então tentou persuadir Jung a colocar suas ideias básicas em um livro, de forma que fossem acessíveis a todos os leitores. Jung, no entanto, à princípio, disse que não escreveria o livro. Disse um não bastante gentil e explicou que no passado nunca tentara popularizar sua obra e que não tinha certeza se o poderia fazê-lo de forma satisfatória aos 84 anos de vida.
Com o sucesso do “Face to Face”, Jung passou a receber uma infinidade de cartas de pessoas comuns, sem qualquer experiência médica, que ficaram encantadas com sua presença marcante, humor e encanto despretensioso durante a entrevista; pessoas que perceberam em sua visão de vida algo que lhes podia ser útil. E Jung ficou muito feliz com tudo isso, não só pelo grande número de cartas, mas também por terem sido remetidas por pessoas com as quais ele não teria tido oportunidade de interagir durante a vida.
Foi então que Jung teve um sonho de grande importância para ele. Sonhou que ao invés de estar sentado em seu escritório conversando com médicos e psiquiatras, estava de pé em um local público dirigindo-se a uma multidão de pessoas que o ouviam extasiadas e que compreendiam perfeitamente tudo o que ele dizia.
Dessa forma, quando o convite para o livro se repetiu, Jung o aceitou. Pedindo apenas que ele não fosse uma obra individual, mas coletiva, realizada com a cooperação de um grupo de seus mais íntimos seguidores. Nasceu assim o último livro escrito por Jung, “O Homem e Seus Símbolos”, livro cujas linhas escritas por ele foram terminadas apenas dez dias antes de sua morte, em junho de 1961.
A entrevista “Face To Face” pode ser assistida de forma sintética no vídeo a seguir e logo depois transcrevi seu conteúdo parcial.
Espero que assim como eu, vocês apreciem essa deliciosa oportunidade de assistir a um dos maiores psicanalistas de todos os tempos falando de forma tão animada sobre um pouco do que ele considerava verdadeiro e valioso, em sua teoria e vida.
“Face To Face” – John Freeman entrevista Carl Gustav Jung de 1959 para a BBC.(Legenda e tradução do vídeo: Erick Ungarelli)
Transcrição Resumida da Entrevista “Face to Face”
Freeman: Posso levá-lo de volta a sua infância? O Sr. se lembra da ocasião em que pela primeira vez teve consciência do seu self individual?
Jung: Foi aos onze anos. De repente a caminho da escola eu saí de uma névoa. Foi exatamente como se eu sempre houvesse estado em uma névoa, andando em uma névoa, e eu saísse dela sabendo: “Eu sou o que sou”. E depois eu pensei: “Mas o que eu era antes?” E então eu soube que eu havia estado em uma névoa sem saber me diferenciar das outras coisas até então. Antes eu era apenas uma coisa entre outras coisas.
Freeman: Que lembranças o Sr. tem de seus pais? Eles o educaram de forma rigorosa e antiquada?
Jung: Bem, eles pertenciam à época posterior à Idade Média. Meu pai era um pastor protestante do campo e você pode imaginar como eram as pessoas naquela época, em 1870. Elas tinham as mesmas convicções que regiam a vida das pessoas há mil e oitocentos anos.
Freeman: Com quem o Sr. se dava mais intimamente, com o seu pai ou com sua mãe?
Jung: É difícil dizer, é claro que as pessoas são comumente mais próximas das mães, mas quando se tratava de um sentimento pessoal, eu me relacionava melhor com meu pai, que era mais previsível do que com minha mãe que era para mim algo um tanto problemático.
Freeman: O Sr. era feliz na escola?
Jung: No começo eu fiquei feliz por ter companheiros, porque eu era muito solitário. Nós morávamos no campo e na época eu não tinha irmãos. Minha irmã nasceu muito tempo depois. Mas logo, para uma escola rural, eu estava muito adiantado. Então comecei a me chatear.
Freeman: O Sr. acreditava em Deus naquela época? E agora, o Sr. acredita?
Jung: Sim, na época eu acreditava. Agora? É difícil responder porque… eu o sei/o conheço. Eu não preciso acreditar porque agora eu o sei/o conheço.
Freeman: O que o fez querer tornar-se médico?
Jung: Foi uma escolha oportunista, pois à princípio eu queria ser arqueólogo, egiptólogo, mas não tinha dinheiro. Então meu segundo amor era a natureza, a zoologia. Pensei na faculdade de ciências naturais. Então percebi que seria professor e essa não era minha aspiração. Então soube que estudando medicina eu teria uma chance de ser médico e atuar na prática. Fazer algo útil aos seres humanos brilhou para mim.
Freeman: O Sr. ao decidir ser médico teve dificuldade em alguns exames?
Jung: Particularmente tive dificuldade com alguns professores. Alguns não acreditavam que eu fosse capaz de escrever uma dissertação. Um professor me disse uma vez que meu trabalho teria sido de longe o melhor da sala se eu não o tivesse copiado. Fiquei furioso e disse que aquela tinha sido a dissertação na qual eu tinha trabalhado mais, pois o tema para mim era muito interessante.
Freeman: Quando o Sr. se decidiu pela medicina, o que o fez se especializar-se em psiquiatria?
Jung: Quando eu estava estudando para o exame final deparei-me com um manual de psiquiatria. Até então eu não havia dedicado atenção ao assunto e me lembro de ter apenas lido a introdução que falava da psicose como um desajuste da personalidade e isso foi o suficiente. Meu coração bateu selvagemente e eu sabia que seria psiquiatra. Ninguém compreendeu porque naquela época a psiquiatria não era absolutamente nada.
Freeman: Quanto tempo depois dessa decisão o Sr. entrou em contato com Freud?
Jung: Isso foi no final dos meus estudos. Demorou um pouco até que isso acontecesse. Em 1900 eu já tinha lido a interpretação dos sonhos e os estudos de Breuer e Freud sobre a histeria. Só em 1907 conheci Freud pessoalmente.
Freeman: O Sr. concluiu qual o seu próprio tipo psicológico?
Jung: Naturalmente dediquei muito tempo a essa dolorosa questão. Bem, o tipo não é nada estático, muda durante a vida, mas eu certamente me caracterizei pelo pensamento. E sempre tive também muita intuição. Eu tinha dificuldade com sentimentos e minha relação com a realidade não era brilhante. Eu sempre estava em discordância com a realidade das coisas. Aí estão todos os dados para um diagnóstico!
Freeman: Olhando para o mundo de hoje o Sr. acha que uma terceira guerra mundial é possível?
Jung: Uma coisa é certa, uma grande mudança de nossa atitude psicológica é iminente. Isso é certo.
Freeman: Por quê?
Jung: Porque precisamos de mais. Precisamos de mais psicologia. Precisamos de mais entendimento sobre a natureza humana, pois o único perigo real existente é o próprio homem. Ele é o grande perigo e lamentavelmente não temos consciência disso. Sabemos muito pouco sobre o homem. Sua psique deveria ser estudada, pois somos a origem de todo o mal vindouro.
Freeman: O Sr. escreveu coisas sobre a morte que me surpreenderam um pouco. Lembro-me que o Sr. disse que a morte é psicologicamente tão importante quanto o nascimento, que é parte integrante da vida. Mas ela não pode ser como o nascimento se é o fim. Ou pode?
Jung: Certo, se ela for um fim, mas não estamos muito certos desse fim. Porque existem as faculdades especiais da psique que não é inteiramente limitada pelo espaço e tempo. Você pode ter sonhos, ou ver doses do futuro. Pode ver mais longe do que as esquinas. Isso mostra que ao menos algumas partes da psique não dependem de limites. E daí se a psique não é obrigada a viver dentro do tempo e espaço? Isso indica uma continuação prática da vida. Uma espécie de existência psíquica além do tempo e espaço.
Freeman: O Sr. acredita que a morte é um fim?
Jung: Bem, não posso dizer. A palavra acreditar é algo difícil para mim. Eu não acredito. Eu preciso de uma razão para uma dada hipótese. Eu sei uma determinada coisa e então eu a sei. Não preciso acreditar nela. Não me permito acreditar por acreditar. Eu não posso acreditar, mas com suficientes razões para uma hipótese eu a aceitarei naturalmente.
Freeman: Que conselho o Sr. dá às pessoas idosas que creem que a morte é o fim de tudo?
Jung: Eu tratei de muitas pessoas idosas e é interessante perceber que o inconsciente ao notar que está aparentemente ameaçado pelo fim total, passa a menosprezar tal fato. A vida se comporta como se fosse prosseguir, dessa forma acho melhor que uma pessoa de idade viva na expectativa do dia seguinte como se fosse viver séculos, assim ela viverá adequadamente. Se ela tiver medo e não tiver perspectiva, ela olhará para trás e ficara petrificada e morrerá antes do tempo. Mas se ela estiver viva e aguardar ansiosa a grande aventura ela viverá.
Freeman: O que o Sr. acha da ideia de imergir a natureza individual do homem em um todo coletivo e padronizado?
Jung: Em suma (…) o homem não pode suportar uma vida sem significado.
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