Carta aberta ao motoboy que quase me atropelou na calçada.

Caro senhor motociclista,

O senhor bem sabe como andam as coisas. A gente precisa correr contra o tempo. Tem de acelerar, manter o ritmo, o emprego, as contas em dia. Pois foi por isso mesmo que eu caminhava apressado, inda agorinha, e não vi o senhor e sua motocicleta vindo na direção contrária, acelerando sua máquina na calçada para fugir do trânsito cheio da rua nervosa.

Tenha a bondade de me perdoar o mau jeito. Embora em direções opostas e em veículos diferentes – vossa senhoria numa Honda e eu num All Star – estávamos os dois na mesma situação, muito mais do que na mesma calçada. Somos peças de uma mesma engenhoca. Corremos com os mesmos prazos, fugimos dos mesmos credores, sofremos decerto as mesmas inseguranças. Estamos no pique.

Juro que não foi minha intenção atrapalhar a sua passagem pela calçada onde, segundo as leis de trânsito, só devem andar os pedestres. Mas quem é que liga para as leis neste país, não é mesmo? Eu é que devia prestar mais atenção, aguçar os ouvidos, olhar para um lado e para o outro antes de pisar na calçada, apelar ao meu sexto sentido. Estivesse eu atento, podia ter saltado mais cedo para cima de uma árvore a fim de deixar o passeio livre para sua máquina correr à vontade.

Faço fé que o senhor há de entender que eu também estava com pressa. Confesso: por um instante eu tive a impressão de que a sua motoca desviaria ou frearia na minha frente. Mas eu me enganei. O senhor apertou a buzina, acelerou ainda mais e só não passou por cima de mim porque eu fui praticamente um ninja. Ah, eu mandei muito bem! Provei, impecável, a perfeição dos meus reflexos. Fui capaz de um malabarismo intuitivo, um jogo de corpo primoroso, e evitei nosso encontrão violento.

Deve ter sido a chamada memória do corpo. Na hora exata, meus músculos se lembraram dos anos em que eu ainda não era um sedentário, retornaram à boa forma dos anos em que eu nadava, pulava, corria, levantava peso. E por um segundo me tornaram um vigoroso ginasta, veloz, habilidoso e certeiro em escapar do meu algoz. Se não foi isso, meu caro motoqueiro, foi Deus. Aliás, foi Ele mesmo.

Eu acredito. Eu agradeço. E eu peço a Deus que ilumine os milhares de pedestres deste Brasil tão cheio de calçadas. Que eles não atrapalhem o trabalho honesto dos nossos motoboys, não é mesmo? Que não cometam o erro que eu cometi inda agorinha. Você ali, querendo acelerar sua moto em paz entre os transeuntes, e eu atrapalhando o seu caminho, como o mais banal e aborrecido andarilho desatento. Queira então aceitar minhas humildes desculpas.

A propósito, não conheço a senhora sua mãe. E reconheço que fui injusto ao usar um nome feio para invocá-la, logo depois de quase interromper a sua corrida pela calçada. Peço desculpas duplamente.

Tenha uma boa viagem!

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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