Caro, Wassily Kandinsky,

Você não sabe quem eu sou e provavelmente nunca vamos nos conhecer. Mas, como a arte faz a gente pensar coisas inimagináveis, resolvi escrever esta carta. Hoje eu fui à uma exposição sua que está rolando no CCBB do Rio de Janeiro. A abertura foi ontem, dia 28, e vai durar até 30 de março. Essa exposição já passou por Brasília, depois vai para Belo Horizonte e São Paulo. É a primeira vez que suas obras saem da Europa e vêm para o Brasil. As peças que estão na exposição são do acervo de vários museus e coleções particulares. Eu vi quadros seus, objetos, fotos e algumas coisas que você escreveu. Você, além de pintar, tinha o dom da palavra. Escreveu livros e descrevia a arte da forma que eu vejo, como algo mágico. Além das suas obras, vi quadros de outros artistas, como da sua ex-mulher, Gabriele Münter. Achei ela incrível! Confesso que não conhecia o trabalho dela, mas me surpreendi quando descobri que ela era sua aluna e de repente vocês se viram tomados pelo amor. Também vi obras de Alexej Von Jawlensky , Mikhail Larionov, Pavel Filonov, Nikolai Kulbin e Aristarkh Lentulov. Alguns deles eram seus colegas de arte, não é? Resolveram juntar todo mundo na exposição para mostrar um pouco sobre a arte moderna e contemporânea.

Eu sempre soube quem você era, porque, claro, você é o pai do abstracionismo e eu sempre gostei muito de arte abstrata. Quando eu era pequena, achava que não sabia desenhar direito. Meus desenhos eram sempre mais feios do que dos meus amigos. Então, eu resolvi pintar rabiscos, misturar cores que não faziam sentido para ninguém, mas para mim, faziam todo o sentido do mundo. Depois eu nunca mais pintei. Comecei a achar que deveria criar algo que as pessoas entendessem melhor, por isso comecei a escrever.

Hoje, quando eu te encontrei através de cores e rabiscos, resgatei aquela menininha que colocava todo seu sentimento na tela. As cores, depois de um tempo, criam vida, que nem as palavras fazem em um texto. “Eu vi todas as minhas cores em espírito, diante dos meus olhos. Selvagens, linhas quase loucas foram esboçados na minha frente”, você disse. E eu acredito que seja verdade. As cores têm sons e texturas que nós não conseguimos perceber. Talvez você seja uma espécie de mago. Você tinha essa relação com arte e espiritualidade, né? São Jorge era um santo que te provocava uma reação diferente, tanto que você fez um quadro abstrato dele. Depois que eu descobri que aquele era São Jorge, o quadro saiu do abstracionismo para mim. Isso que é o mais interessante na arte abstrata. De tanto olhar, uma hora você para de observar o quadro para fazer parte dele.

Você nasceu na Rússia, em Moscou, estudou direito, porque era o sonho do seu pai, mas depois que viu um quadro do Claude Monet e assistiu à ópera Lohengrin, no Teatro Bolshoi, decidiu que deveria investir na carreira de artista. Em 1869, você se mudou para Alemanha para começar um curso de pintura. Logo no começo, seu professor disse que as cores que você usava eram muito chamativas e diferentes, por isso você deveria pintar apenas em preto e branco. Isso lhe rendeu algumas xilogravuras que eu também encontrei na exposição. Mas para você isso foi uma afronta, já que as cores eram aquilo que mais lhe chamavam atenção.

Você trabalhou por muito tempo como artista independente e em suas obras fica claro sua ligação com a arte popular, o folclore russo, a cultura popular da Sibéria e rituais xamânicos. A parte fantástica e surreal dos contos de fadas que você ouvia desde pequeno te ajudou a se desprender um pouco do naturalismo, que era fortemente reconhecido na época. Além da música, as histórias surreais influenciaram muito o seu estilo. Você tinha um forte apego com aquilo que não se explica.

Depois de entrar em contato com os Zyrianos, um povo ugro-fínico da nação Kómi que tinha conexão com o xamanismo, você chegou à conclusão de que através da arte o homem e o divino podem criar uma relação direta. Essa ideia é muito antiga e vem desde os nossos primórdios, quando a arte era usada como forma de poder para atrair ou espantar maus espíritos. Descobri que você, a partir de então, procurou em cada objeto uma manifestação espontânea ou expressão de seus sons e cores interiores.

O artista tem o papel de juntar os dois mundos. Por isso você escreveu que “pintar é detonar um choque de mundos diferentes”. Eu acredito que você esteja falando do nosso mundo tátil e do mundo “divino”, o qual não temos acesso e não sabemos nada. Eu chamo esse mundo de mundo das ideias. E você é o grande responsável por trazer tantas ideias em forma de cor. Você é a ponte entre o nosso mundo e o das ideias.

Sua arte chama atenção porque existe um pouco da sua história em cada traço. É completamente autêntico. Cada caminho que você percorreu pela vida, cada história que ouviu, cada cultura que conheceu, cada arte que você se encantou, fazem parte das suas obras. Eu tinha uma vaga impressão sobre você, mas agora sinto que te conheço muito bem. A arte é uma porta de entrada para a alma de alguém. Depois de olhar de perto algumas das suas pinturas, senti como se eu te olhasse de perto e percebi que temos mais coisas em comum do que eu imaginava. Por isso, me senti tão à vontade de te escrever essa carta. Você mudou minha percepção sobre arte abstrata, porque descobri que o abstrato é um espelho do artista e um espelho do espectador. A identificação é instantânea.

Obrigada.

Com carinho,

Marcela.

Kandinsky

Marcela Picanço

Atriz, roteirista, formada em comunicação social e autora do Blog De Repente dá Certo. Pira em artes e tecnologia e acredita que as histórias são as coisas mais valiosas que temos.

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