“Às vezes, não há nenhum aviso. As coisas acontecem em segundos. Tudo muda. Você está vivo. Você está morto. E as coisas continuam. Somos finos como papel. Existimos por acaso entre as percentagens, temporariamente. E esta é a melhor e a pior parte, o fator temporal. E não há nada que se possa fazer sobre isso. Você pode sentar no topo de uma montanha e meditar por décadas e nada vai mudar. Você pode mudar a si mesmo para ser aceitável, mas talvez isso também esteja errado. Talvez pensemos demais. Sinta mais, pense menos.”
(Charles Bukowski)
Ouvi um barulho na madrugada do último sábado, porém não fez muita diferença para mim. Ouço tantos estrondos desde que me mudei para a capital, que passei a ignorá-los. Acostumei-me tanto com o barulho que nem ouço mais os aviões que passam a todo minuto. Talvez tenha sido um rojão, talvez uma pequena demolição. Há tantas obras em andamento aqui por perto…
Saí de casa no domingo e me deparei com a rua onde eu moro – usualmente tranquila – completamente congestionada. Um acidente, talvez.
Quando fui me dando conta do que havia ocorrido enquanto observava a Avenida Santo Amaro interditada ao mesmo tempo em que ouvia a radio CBN informando sobre o acidente e sobre a repercussão no trânsito – já tão congestionado da capital paulista – foi que eu entendi o quanto aquilo tudo iria mudar minha rotina. Meu percurso diário havia sido interditado por tempo indeterminado.
A primeira reação é sempre de raiva. É hilária a tendência que o ser humano tem ao egocentrismo. Eu passei alguns minutos inconformada com aquele acidente, buscando uma forma de aceitar que o caminho que eu me acostumei a percorrer todos os dias para levar meu filho à escola havia sido bloqueado em decorrência de um acidente entre dois caminhões imprudentes que transportavam cargas inflamáveis e que desrespeitaram a sinalização do semáforo e o limite de velocidade.
Assim como eu, muita, mas muita gente mesmo foi prejudicada pelo acidente e eu espero que isto tenha nos mostrado o tamanho da nossa responsabilidade no trânsito. Muitas famílias moravam sob o viaduto da Avenida Santo Amaro, que passava por cima da Avenida dos Bandeirantes onde os dois caminhões colidiram, gerando uma explosão. Ao voltar da praia depois do carnaval eu vi que as famílias haviam sido retiradas dali, evitando assim que morressem carbonizadas. Foi o meu alívio por saber que as famílias não estavam mais ali que me fez começar este artigo com uma das mais inteligentes frases de Bukolwski. A vida hoje é, e amanhã não é mais.
Hoje eu acordei e tive que descobrir um novo caminho para chegar ao outro lado da tumultuada Avenida dos Bandeirantes e descobri que não só é bacana, mas chega a ser imprescindível que a vida interrompa nossos caminhos de vez em quando e nos obrigue a sair da confortável zona na qual não precisamos arriscar. Hoje, ao percorrer com a ajuda do aplicativo Waze, eu vi novas paisagens, vi novos congestionamentos, percorri ruelas até então desconhecidas e principalmente, aprendi que vários são os caminhos que podem me levar ao meu destino.
O desconforto inicial por ser obrigada a parar e mudar de direção mostrou-se mais uma vez importante para a criação de um novo repertório comportamental.
A imprudência de dois cidadãos mostra o quanto nossas atitudes podem prejudicar drasticamente aos outros.
Então, diante de mais este aprendizado eu resolvi bancar a Pollyanna e fazer o jogo do contente. Sou grata por um acidente tão grave não ter feito nenhuma vítima. Sou grata por ser mais uma vez obrigada a desbravar o trânsito de São Paulo. Sou grata por existir e por aprender.
Há algum tempo escrevi sobre os benefícios de mudar o caminho, alterar as rotas seguidas “no automático”. A vida me obrigou a passar por esta lição. Espero sentada pela reconstrução do viaduto que foi condenado à demolição. Espero apressada pela responsabilização legal dos motoristas e das empresas que permitem que seus funcionários circulem por aí carregando combustível, desrespeitando o sinal vermelho e ultrapassando o limite de velocidade. Espero finalmente que possamos todos seguir ilesos pela vida pelo maior tempo possível, pois somos mesmo finos como papel.
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