As coisas boas têm o seu momento. E geralmente chegam após noites frias e dias cinzentos.

1980. Na formatura da pré escola uma menina encabulada, de cabelos curtos e saia pelo joelho segura um cartaz com a letra “X”. Cada criança da turma tem um cartaz parecido nas mãos, com as demais letras do alfabeto e, para significar que foram alfabetizadas, as crianças, uma a uma, falam uma frase que começa com a letra que seguram. A menina tem 6 anos e sabe o que vai acontecer depois que o menino com a letra “V” disser sua frase. Ela segura firme a letra “X”, fecha os olhos e espera. O microfone suspenso na mão da professora se aproxima e, numa fração de segundos que parece durar uma eternidade, ignora a presença da menina, finge que ela não está ali, e finalmente pousa junto à criança que segura a letra “Z”. A criança da letra “Z” finaliza a apresentação com uma frase citando algo como “zelo” e a menina da letra “X”, que não teve a oportunidade de dizer nada, ouve os aplausos que não são para ela. Então se lembra dos comentários da professora no ensaio: “Ela vai segurar a letra “X”, pois para “X” não temos frase, e essa menina não fala nada mesmo…” e pensa em tudo o que queria dizer e não disse. Em tudo que poderia ter sido e não foi. Em seu interior, uma voz recusa a identidade “X” atribuída pela professora. As cortinas se fecham e o futuro a aguarda.

Adoro a expressão “quem te viu, quem te vê”. Pois a vida surpreende e o tempo recompensa. E aqueles que tanto nos julgaram podem se espantar ao verem onde chegamos. Aqueles que nos rejeitaram podem se assombrar com nossa volta por cima. Aqueles que quiseram nos brecar podem ficar pasmos ao assistir à concretização de nossos sonhos.

Um dia agradeceremos aos tombos e tropeços. Seremos gratos à falta de chão e às puxadas de tapete. Celebraremos as dificuldades e recusaremos o papel de vítimas. Pois entenderemos que, se não foi possível recusar as dores, acabamos amadurecendo com elas. Se não foi possível evitar os dramas, acabamos evoluindo com eles.

Chico Buarque cantou: “Olhos nos olhos, quero ver o que você faz, ao sentir que sem você eu passo bem demais…”  e longe de qualquer vingança, temos que ser gratos às voltas que a vida dá. Pois a vida é um enorme leque de possibilidades e promessas, e temos que aprender o jeito certo de reagir, de não perder a delicadeza mesmo que estejamos feridos, de recomeçar, de sermos doces. E descobriremos que a dor do abandono nos trouxe uma lucidez alarmante, uma admiração completa por nós mesmos e uma capacidade assombrosa de ressignificar as coisas.

As coisas boas têm o seu momento. E geralmente chegam após noites frias e dias cinzentos. Então a gente olha pra trás e entende que não precisa mais da aprovação dos colegas zombeteiros do tempo de escola, do patrão incrédulo, da moça que nos olha de alto à baixo na academia, daqueles que nos rejeitaram, dos que nos julgaram, dos que nos despedaçaram. Nós seguimos em frente, e hoje somos nós que “pedimos desculpas” por estarmos tão bem.

A vida dá voltas, o mundo gira, o jogo vira. A menina segurando a letra “X” na formatura da pré escola cresceu e aprendeu a dar voz aos seus sentimentos. As frustrações daquele dia e as que se seguiram durante todos os anos de colégio (que não foram poucas) se tornaram o combustível para o que estava por vir.

Aos 43 anos, tenho concretizado tudo o que sonhei. No último sábado, sentada na Livraria Saraiva e recebendo o carinho de centenas de pessoas que aguardavam na fila para um autógrafo, abracei a menina tímida carregando a letra “X”. Enxuguei suas lágrimas com a manga do meu vestido rendado e segredei no seu ouvido que isso vai passar. Ela me olhou com aqueles olhinhos tristes e passou a mão no meu cabelo longo. Perdoou seu cabelo curto, a professora intolerante e a falta de palavras. Naquele momento éramos só nós duas, separadas pelo tempo de 37 anos e uma conquista que eu devia à ela, a menina do “X” que me ajudou a crescer.

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Imagem de capa: Kichigin  / Shutterstock







Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.