Nas relações amorosas cotidianas, temos a natural propensão de ajudar o outro que consideramos relevante, mas não assusta a facilidade com que se pode ultrapassar a fronteira da sua liberdade individual, o que compromete a eficiência do ato de ajudar, uma vez que percebe-se esse ato como invasão de privacidade.
Alguns não querem ser ajudados, outros alegam não precisar de ajuda, outros não pedem ajuda. O restante é composto dos que sobrevivem.
A abertura para ajuda é benéfica para todos que desejam melhorar, e uma oportunidade para os intrometidos. Pessoas que se amam a um nível avançado não demonstram hesitação em intrometer-se nos problemas do outro, havendo permissividade. O problema é que o hábito gritante de ajudar às vezes passa uma sensação de inconveniência, quase sempre causada pela falta de percepção da circunstância apropriada para ajuda e dos humores associados a ela.
Como ajudar sem se intrometer na vida do outro? Deixando claro que, na relação, a vontade de cuidar deve ser maior do que a necessidade de parecer forte. Por quê? É que o cuidado muitas vezes esconde um investimento egoísta por parte do doador. O indivíduo que oferece de si toda sua existência desnuda parecerá fragilizado demais, do que se vê que os mais ambiciosos por poder dissimulam partes da sua.
O “sincericídio”, termo popular para a verbalização explícita da verdade pura, é ditado nas cartilhas de etiqueta como um defeito característico dos tolos e inocentes. Afinal, costuma ser intolerável e arrebatado aquele que resolve dizer aos outros todos os juízos de fato que estão sob sua compreensão. Como ele resolve isso? Omitindo partes da sua verdade, deixando à tona apenas o que deseja ser socialmente reconhecido, tudo que aos olhos alheios gere uma impressão mais qualificada possível à autoimagem desejada. Uma autêntica vida teatral.
Verdades absolutas, por natureza ilusórias, estão no bolso não só dos moralistas, mas também dos que promovem uma moral autônoma; do contrário, a autonomia não encontraria sustento. Uma sociedade não perdura sem verdades concordadas, mas pode sobreviver longinquamente acreditando em ilusões concordadas. Algumas verdades são de fato; outras, de valor. Algumas ilusões são protetoras; outras, destruidoras. Em suas heroicas tentativas de defender uma vida digna, um moralista talvez se esqueça de que grande parte de seus problemas não são universais e, portanto, a sua dignidade de fato pode ser facilmente interpretada pelo outro como uma indignidade de valor.
Enumeráveis vezes, solicitamos ajuda externa para resolver uma questão pessoal crítica. Vender o carro, comprar um apartamento adequado, pedir em namoro a amiga há tempos admirada em segredo, aceitar ou não uma proposta de emprego no exterior. Se à risca acatamos e seguimos os conselhos, tomando a decisão que nos foi passada, mas, depois, devido às circunstâncias desvantajosas, falhas de cálculo ou intemperança as coisas dão errado e caímos num prejuízo estratosférico, é presumido que os conselhos foram a causa do fracasso. Em outras situações, pedimos suporte e o outro reage com intromissão exagerada, mas, se mesmo assim resolvemos agir conforme foi imposto pelo intrometido, ou formos obrigados a isso, e os resultados finais acabam se mostrando ótimos, agradecemos pela intromissão. Os indicadores de ação oferecidos foram julgados pela sua finalidade.
Excelentes ajudantes dão muitos conselhos idiotas e sem sentido, e péssimos ajudantes, com suas intromissões, às vezes contribuem para o melhor. A chave está em entender como uma ajuda pode ser dada sem perturbar a liberdade do outro, e também como uma invasão à liberdade poderia ser evitada para ajudar efetivamente. Em certas ocasiões, a única forma de ajudar é sendo intrometido, mas são poucos os que se preocupam com as necessidades do outro sem usar delas como insumos para tocar os empreendimentos ativos de seu ego.
É muito gostosa a satisfação de ver seu time vencendo quando se o apoia com fidelidade irrefreável, o raro é ser fidelíssimo mesmo o time estando na posição mais inferior e humilhante do campeonato. As pessoas passam a vida procurando por outras com as quais podem sofrer derrotas, quantas forem, sem que a vergonha e o medo do abandono ameacem a razão legítima de torcer: o sabor da vitória.
Os casais mais estáveis são aqueles que, por causa da sua certeza de amor e compromisso, da sua coragem recíproca, da sua parceria muito bem conscientizada, conquistaram imunidade à intuição competitiva, a de que todos os que estão de fora são potenciais adversários. Eles temem a traição e, se dizem não temê-la, mentem para demonstrar segurança. Mas, parando eles de alimentar a dúvida sobre o amor que sentem e, ainda por cima, valorizando a arte desse sentimento com zelo e disciplina, o ciúme perde toda sua validez, e o resultado é que, por puro respeito, quem está de fora faz questão de não interferir na relação a não ser que seja para ajudar, e para o casal ninguém de fora os ameaça. Casais maduros e bem resolvidos não precisam fazer juras de amor para o universo inteiro ouvir; o seu próprio amor responde por eles. Estando juntos, vê-se que mantêm uma separação que torna sua liberdade individual um recurso agregador do conjunto; estando separados, selam uma união que torna sua segurança um aspecto invendável de seu amor.
Um homem que trai sua esposa é um intrometido: ele se mune de crenças irracionais e absurdas para justificar que, desprezando os sentimentos da sua mulher, está colaborando para a saúde do casamento. Assim, muitas manifestações práticas de ajuda gregária são, na verdade, impulsos narcísicos disfarçados.
É parcial todo envolvimento solidário em uma questão delicada de alguém, então a abordagem precisa ser focada em pontos específicos do caso, para que os planos de ação não sejam subjetivos ou o problema seja generalizado. A única forma de conhecer toda a história, toda a base de traumas e neuroses, todos os méritos e crimes morais cometidos, todas as necessidades e motivações de uma pessoa é sendo a própria pessoa. Portanto, a ajuda que mais serve não é aquela que vale para todos, mas a que faz os ajudados gratos por terem-na recebido justo na ocasião que precisavam.
Muitos conselhos são dados com hipocrisia. O senso comum diz que os mais velhos são, provavelmente, mais sábios. A hipocrisia é tanto maior na pessoa quanto mais experiência ela tem, tendo esta cometido uma sucessão de erros na vida, os quais não ousaria recomendar nem ao seu pior inimigo. Dessa maneira, há um papel da hipocrisia na obtenção de sapiência, e uma inevitabilidade de ser falso moralista em algum nível durante a vida.
A preocupação em praticar sempre o que se prega é humanamente elogiável, e uma regra dos moralistas convictos, mas as pessoas mais preocupadas moralmente são aquelas que, longe de esquecer as funções da ética, assumem que certas vezes já se enganaram por suas próprias convicções morais, ou foram enganados por elas, por isso mesmo não as recomendam para todas as circunstâncias, certos de que não puderam experimentar todas, tampouco manter o total controle dos acontecimentos de seu destino.
Ajuda sem ser requisitado, o intrometido, enquanto o requisito para este agir não se limita à necessidade de ajudar. A falta de respeito que acompanha uma situação de descortesia é o sinal do qual deve partir a noção de que, cada vez que se invade a privacidade de uma pessoa, mais longe se estará de conhecê-la. Hoje em dia, com a privacidade fora de moda, nunca se viu tantos contatos humanos serem feitos, e nunca se percebeu tanta desconexão entre conhecidos.
Na intromissão há pouco ou nenhum envolvimento emocional. Na ajuda fraternal, há importância significativa com as emoções do outro. As fofocas difamatórias, por exemplo, são evidências de intromissão. No mundo moderno, muitos não se importam em ter sua privacidade invadida, desde que sejam visualizados.
O intrometido gera repulsa, negação, desmotiva quem está ouvindo. O ajudante cuidadoso trabalha para que o conteúdo de sua ação seja comprado pelo ouvinte sem que este se arrependa.
Muita gente questiona se atos severos de repreensão, envolvendo violência física e moral, são aceitáveis quando ajudam decisivamente na resolução de um problema crônico ou na assimilação de um valor educativo familiar. Isso é imaginado pelos filhos que, na infância, apanharam dos seus pais tantas vezes que perderam a conta. Os pais que precisam bater em seus filhos pequenos, fazendo isso na explicativa de que é para o próprio bem deles, terão inspirado um modelo de como usar a coerção como forma de educar. Revoltados pelo trauma que é ser abusado por quem o colocou no mundo, esses filhos serão adultos mal acostumados a conseguir as coisas na base da negociação pacífica. Então, esses pais machucam fisicamente seus filhos no intuito de bem ensiná-los à vida, o que é um péssimo exemplo, visto que o mundo lá fora carece de tudo, menos intolerância.
Por mais que se ame muito uma pessoa e queira ajudá-la de verdade, essa boa intenção, se mal interpretada em dada situação particular, faz com que a pessoa crie uma resistência cética, de forma que, posteriormente, ela tenda a ignorar até o conselho mais racional para resolver aquela mesma situação, que virou impasse.
Toda ajuda contém uma crítica, escondida ou revelada, e toda crítica estimula o senso pessoal de moralidade. Parece ser muitíssimo mais difícil ouvir lições de moral diferentes das próprias para refletir o que a si faz sentido de fato, do que rejeitar prontamente dogmas opostos para evitar chateações perdulárias.
Antes de ajudar, vai bem questionar: “A minha atitude vai fazer bem para a pessoa, de certa forma, ou há algo nela que possa gerar conflito?”, e “Como reduzir as chances de abalar as crenças da pessoa, sem deixar de abordar um assunto polêmico de forma polida?”
Em primeiro lugar, não se consegue agradar a todos; haverá sempre aqueles pelos quais seremos incriminados. Em segundo lugar, se as crenças de uma pessoa têm poder próprio, não há ideia estranha a elas que não seja enxotada como a um ladrão. Em terceiro lugar, há de se assumir que uma ideia é polêmica porque gera controvérsia. Alguém que preza pela sua originalidade de expressão sabe que nenhuma mensagem encontrará um público-alvo cem por cento satisfeito, que muitos têm gigantesco ciúme pelas suas ideias e as defenderão até no inferno, e que a controvérsia é mais associada com semeação de discórdia do que com agitação reflexiva produtiva. Tomando-se ciência desses fatos, os impulsos de solidariedade acabam sendo menos intrusivos e mais empáticos.
A empatia, produto da inteligência e curiosidade humana, é trabalhada no íntimo do ser, este que respira o calor, que escuta além de com o ouvido, que penetra no escuro e não tem medo de sofrer, que projeta a vida do outro no próprio coração, que pega um diamante impuro para lapidar. O empático tenta se transformar na própria dor do outro para compreendê-la, e volta de sua jornada mais rico do que antes. Na sociedade do idealismo, fala-se muitíssimo da virtude da empatia, talvez por ela ter virado um item de luxo à mostra nas vitrines mais baratas.
Em seu tocante livro Walden, Thoreau deixa no ar uma questão misteriosa:
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