Por Cristiano Pimenta*
Não me parece possível abordar esse tema sem antes enfrentar uma difícil questão: o que é ser homem hoje? É ser machão? É ser heterossexual? Sabemos que há o metrossexual e também — seguindo tendências mais recentes — o lumbersexual. Dizem, aliás, que Brad Pitt, Ben Affleck, dentre outros, já aderiram ao estilo do “lenhador sexy”. Por outro lado, por que um homossexual não seria um homem? E o que dizer de certas mulheres que em tudo parecem ser “mais macho que muito homem”? Ora, essa confusão evidencia que, nessas questões, a vida contemporânea é atravessada por uma ruptura com os antigos padrões.
O homem com “H” maiúsculo
Tentemos fazer o contraste entre o passado e o presente. Antes, as referências pareciam mais claras e firmes. A teoria psicanalítica lacaniana mostrou como eram feitos os homens. Na década de cinquenta, Lacan elaborou uma fórmula chamada Metáfora Paterna para traduzir em termos formais a teoria do Complexo de Édipo de Freud. Para psicanálise, também quanto ao sexo masculino, é certo dizer que não se nasce, mas torna-se homem. Dito em termos simples, a Metáfora Paterna nos mostra como um menino torna-se um homem, a saber, pela interdição que a função paterna introduz nas relações mãe-criança. Trata-se da famosa interdição do incesto, mas que atinge não só a criança como também a mãe. Pelo lado da criança, a função paterna lhe impõe um “Não te deitarás com tua mãe”. E pelo lado da mãe um “Não reintegrarás teu produto”. O pai, portanto, salva a criança de ser devorada pela mãe e é isso que lhe permite tornar-se um homem. Restará apenas o passo seguinte dado pelo projeto de homem: “Eu quero ser igual ao papai”. Eis que nasce um homem! Sim, pois, na medida em que sou igual ao papai me sinto no direito de ter uma mulher, ou seja, me é permitido que um objeto venha substituir a mãe. A coisa culmina na família, no interior da qual terei minha autoridade de pai, do homem da casa, etc.
Antes de apontarmos o declínio dessa maquininha de fabricar homens à imagem do pai, quero chamar a atenção para as características gerais desse antigo homem-pai. Ele era absolutamente seguro de si na relação amorosa com a mulher. Ele se sentia, ele se via, como sendo o possuidor daquilo que uma (a sua) mulher mais poderia desejar, a saber, sua própria masculinidade, à qual Lacan consagrou o termo falo. Ser homem aqui é ser o portador daquilo que satisfaz o desejo de uma mulher, daquilo que estabiliza, orienta e apazigua a aflição feminina. Nesse sentido, ser homem é anterior ao ser o provedor. Ser homem é, antes, a condição necessária para prover. Ser homem é estar no poder. De um modo geral, na história humana, o poder sempre foi coisa de macho, e o falo é a essência do macho.
E como ama esse homem simbolizado pelo pai severo, cuja vontade era expressa e atendida com um simples olhar enfurecido? Digamos que ele não foi talhado para amar, mas sim para ser amado. É que amar fragiliza, enfraquece, gera dependência para com o objeto amado. Amar é confessar sua falta (Miller). No contexto desse homem-pai-possuidor-do-falo, o amor concerne mais à mulher. Amar é coisa de mulher. Daí que, se esse Homem com maiúscula se enfraquece por amor ele pode ser depreciativamente chamado de “mulherzinha”. Compreende-se, por outro lado, que, dessa perspectiva, ser mulher é ter inveja do pênis (Penisneid), como formulou Freud. A inveja do pênis é o nome freudiano da falta feminina, falta que se apazigua na relação com aquele que é o detentor do objeto do desejo.
A liberação do desejo feminino
Mas um Homem assim terá existido realmente algum dia? Deixo de lado essa questão para dizer que, de todo modo, enquanto Ideal, referência simbólica e identificatória, ele existiu sim. Sua produção dependia da eficácia do pai, enquanto o interditor da relação mãe-criança. Todavia, o pai enfraqueceu. Por quê? Para responder tal questão é preciso observar que essa engrenagem da Metáfora Paterna só funciona se o desejo feminino estiver enganchado nesse Homem, ela foi montada para responder ao desejo feminino, ao qual se supõe poder dizer:“Afinal, o que mais uma mulher poderia desejar além de ter marido e filhos?” Impossível não nos lembrarmos de que a psicanálise foi inventada por Freud justamente na tentativa de tratar das mulheres que não se encaixavam nesse padrão: as histéricas. As histéricas do final do século XIX já testemunhavam, ou melhor, já produziam, o fracasso desse Homem. O desejo histérico se caracteriza justamente por se remeter sempre a uma Outra coisa; ele é por definição insatisfeito, não se apazigua com o falo e nem com os objetos substitutos como o filho. As histéricas foram as primeiras a deixar esse Homem a ver navios. Seus pais, numa última tentativa desesperada de colocá-las na via correta, diga-se arranjar-lhes um marido, as levavam a Freud, como se dissessem: “Quem sabe essa tal psicanálise possa dar um jeito”. Digo de passagem que Freud jamais se propôs simplesmente atender às demandas de adaptação dos pais. O projeto de Freud foi, antes, o de tentar explicar os mistérios que governam a vida amorosa das pessoas.
Eis, portanto, o motivo fundamental do declínio desse Homem-pai: a liberação do desejo feminino. Liberação em relação ao padrão “papai-mamãe”. Já de início, poderíamos dizer que, nesse terreno, o homem está sem bússola, pois o que antes era o Norte para ambos os sexos, o falo, já não cativa tanto, ou já não se encontra lá onde se espera encontrá-lo, tal como podemos ver no filme Jovem e bela. Depois de perder a virgindade para um rapaz que acabara de conhecer, num encontro frio e sem amor, a linda e jovem moça dá início ao exercício da prostituição. Ela se vende a homens mais velhos, sendo que por um deles ela desenvolve um apego maior. Com o falecimento deste em pleno ato sexual ela é descoberta e faz um tratamento psi para voltar a ser uma garota “normal”. Tudo parece caminhar para sua reabilitação, pois ela começa um namoro romântico com um rapaz da sua idade. A surpresa do filme é que ela simplesmente se desencanta disso que seria uma promessa de felicidade e retorna à prostituição. Quando ela reativa o antigo número de celular as mensagens dos clientes pululam uma atrás da outra para regozijo seu. A simplicidade dessa história parece testemunhar o que dizemos aqui: que o desejo feminino segue agora caminhos misteriosos e fora dos padrões estabelecidos.
A psicanálise lacaniana, seguindo as pegadas do desejo histérico, já havia descoberto que um dos traços fundamentais do desejo feminino é o de estar essencialmente ligado ao vazio. Isso permite que a mulher mude com mais facilidade que o homem o objeto de seu desejo, pois lhe interessa mais o vazio que o objeto venha ocultar ou o vazio que possa haver no objeto. É isso que, igualmente, explica o talento das mulheres para representação. É justamente pelo fato de seu próprio Ser estar atravessado pelo vazio, por se reconhecer no vazio, que a tarefa de encarnar qualquer personagem se torna tão acessível a uma mulher. Essa mudança no feminino, ou melhor, essa liberação, por sua vez, fez com os homens também se transformassem.
Um homem que ama
Mas quando nos interrogamos sobre o que seria essa transformação não nos vem à mente, justamente, a imagem do lenhador sexy, ou seja, um ideal encarnado por um Brad Pitt, um homem sedutor que arrebata toda e qualquer mulher, um “pegador”, um Don Juan? E para quem se destinaria o visual cuidadosamente desleixado se não para o desejo feminino? Além disso, essa concepção de homem parece ir ao encontro da queixa de muitas mulheres, a de que os homens hoje não se apegam, não se apaixonam, querem apenas desfrutar do sexo, evitar o amor, o compromisso, etc. Nesse mesmo sentido, poderíamos ainda convocar o ponto de vista de um sociólogo de peso, Zygmunt Bauman, que denunciou, em “Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos”, a superficialidade dos amores na vida contemporânea, a liquidez com que os amores se desfazem antes mesmo de começar.
Contudo, nos tempos atuais, há um fato desconcertante que subsiste ao lado desse o homem fluido, livre e desapegado, a saber, com o declínio do modelo paterno, o homem passou a amar. Eis uma novidade! Sem a proteção das antigas identificações paternas, sem uma bússola para se orientar frente ao desejo feminino, ele se valeu do recurso ao amor. Ao fazer isso, no entanto, o homem adentra um terreno que ele não domina, ou melhor, um terreno dominado pelas mulheres. Inexperiente, se assim podemos dizer, o homem corre o risco de ficar em desvantagem nesse jogo há muito jogado por elas.
Uma posição desfavorável no amor já podia ser observada numa época muito antiga na qual o homem-pai ainda detinha o poder. Foi por volta do século XII, na Europa, onde alguns homens poderosos se lançaram a uma prática paradoxal para o seu tempo que ficou conhecida comoamor cortês. Uma série de condutas foi relatada nos versos dos chamados trovadores. ADama devia ser exaltada, com a correlativa desvalorização do homem devotado. Nos versos do amor cortês, a mulher torna-se um objeto supervalorizado, transcendente, inacessível, intocável. Ela não se caracteriza por ser virtuosa e amável com o homem que lhe “faz a corte”. Ao contrário, ela é extremamente arbitrária e impõe cruéis provas de amor àquele que se torna seu “servidor”. Encontramos, assim, o homem em uma posição de desvalorização e humilhação na relação amorosa. Posição paradoxal para uma época em que as mulheres não detinham nenhum poder econômico e social e o modelo patriarcal reinava. Essa Dama cruel e arbitrária, esvaziada de toda qualidade, encarnação do vazio, vazio que será contornando por uma série de procedimentos realizados pelo homem através de uma conduta de rodeio, serviu de referência para Lacan pensar sua noção de real sob a forma de a Coisa (das Ding). Segundo Lacan, essa mulher, que encarna o real, é para o homem “um objeto enlouquecedor, um parceiro desumano”.
O fato de que a mulher enlouquece um homem na relação amorosa pode ser considerado uma herança do amor cortês presente nas relações atuais. Levado à loucura, um homem pode perder as estribeiras e bater na mulher. Mas o fato mesmo de enlouquecer, transgredir a lei a ponto de ser levado preso, deve ser avaliado em relação ao despreparo desse homem atual frente ao desejo feminino. No filme de Lars Von Trier, “Anticristo”, encontramos um exemplo cheio de ironia de um homem que enlouquece na relação amorosa. Nesse longa, o marido terapeuta se dedica pleno de confiança e certeza ao tratamento de sua própria esposa. Ele a leva para uma fazenda isolada onde a natureza reina e ali aplica uma série de técnicas comportamentais de tratamento. Tudo fracassa. O especialista nos assuntos psi é o que menos sabia a respeito da psique de sua esposa. Ela surta, tenta matá-lo e ele tem que lutar pela própria vida para escapar. Enlouquecido pela loucura dessa mulher, ele a mata e queima seu corpo como o de uma bruxa. A ironia, portanto, é que o marido-terapeuta-salvador, se tornou o assassino de sua paciente-esposa. Por que motivo ele se dedicou de corpo e alma a esse tratamento? É simples: porque amava sua esposa. “Anticristo” coloca em evidência o fato de que a agressão masculina testemunha que o homem não controla mais a mulher. Esse descontrole evidencia também que amar, para o homem, é um modo de gozo, um gozo que pode ser mortífero.
À mulher nada falta
Nesse mesmo sentido, encontramos na teoria psicanalítica lacaniana uma formulação que inverte a clássica posição de superioridade do homem em relação à mulher, a posição de independência e poder do possuidor do falo e a correlativa dependência daquela a quem só restava a inveja do pênis. Hoje é comum o homem se apresentar como faltoso e a mulher, por seu lado, se apresentar como aquele ser a quem nada falta, ou que “não precisa de homem para nada”. Lacan percebeu que isso já estava inscrito em um nível básico da relação homem-mulher, o nível da relação sexual. Aí o homem está em evidente desvantagem pelo simples fato de precisar produzir e manter a ereção de seu órgão, o pênis. Assim, na hora “H” (que é a hora do Homem se colocar à prova) as coisas são tensas para ele: seu órgão pode não funcionar como esperado, a relação pode terminar antes do previsto ou simplesmente não acontecer. Por outro lado, mesmo que funcione bem, com ou sem ajuda de um “Viagra”, no final assiste-se inexoravelmente a uma detumescência, que simboliza a perda da sua virilidade. A mulher não. Neste nível ela sai do ato tal como entrou: intacta. Por não ter nada a sustentar, também não tem nada a perder. No nível do gozo não se pode falar em inveja do pênis na mulher, pois “não lhe falta nada” (Lacan). Ao contrário, “a mulher se revela superior no campo do gozo” (Lacan).
Não é novidade que a vida sexual do homem seja atravessada pelo drama da impotência. Na adolescência a experiência sexual ainda inédita é temida, o que explica o tempo enorme dedicado aos jogos de internet. Na maturidade há o temor de uma impotência inesperada e na velhice pode haver uma impotência há muito esperada. Nem precisaríamos falar da perturbadora questão do tamanho do seu pênis. Enfim, ao vincular sua virilidade à ereção de seu órgão, o homem se torna refém desta última. Não é o caso, por exemplo, das mulheres homossexuais que na relação sexual ocupam o lugar masculino, ativo, que faz a parceira gozar satisfatoriamente. O fato de não terem um pênis não lhes traz nenhum problema. Algumas, aliás, sentem-se muito mais viris justamente por não possuírem esse órgão tão frágil e problemático.
Pois bem, essa inferioridade masculina no campo do gozo é transposta ao campo do amor. Justamente por ter algo a perder, o homem se encontra em uma posição de desvantagem no amor. Poderíamos dizer que, quando um homem perde a sua mulher (ou até nos casos em que ele mesmo se separa dela), é como se uma parte de si mesmo lhe fosse cortada fora. Imagem que nos remete ao mito da costela de Adão com a qual Deus fez o objeto do desejo, Eva. Já a mulher, por já estar castrada de saída, por habitar o vazio, está muito mais preparada para a perda. Nenhum objeto é capaz de obturar sua relação íntima com o vazio. O sofrimento feminino está ligado mais às suas relações com o vazio. Via de regra, a solidão, por exemplo, é insuportável para a mulher. O homem, com seus apetrechos, seus canais por assinatura, lida melhor com a solidão. Seu mundo desaba apenas quando ele perde seu objeto privilegiado. Vale mencionar aqui a lembrança de um jovem que eu acabara de conhecer na mesa de um bar e que do nada soltou: “Não tem comparação, uma separação é muito mais difícil para nós, homens, do que para elas”.
Nesse sentido, a clínica psicanalítica nos mostra homens surpreendidos e traumatizados com isso que para eles se apresenta como absolutamente inesperado: o fato de que em dado momento de crise, mesmo em relacionamentos já duradouros, a mulher amada se revele perfeitamente capaz de viver sem ele. É aí que encontramos no homem, só para dar um exemplo, o medo da separação. Medo que conduz às mais variadas formas de covardia como, por exemplo, a de investir sua vida e seus bens em uma mulher que, ao menor deslize seu, teria todas as condições de lhe deixar.
Portanto, a superação do amor perdido passou a ser problema de homem. Talvez possamos afirmar, em resposta às mulheres que dizem que os homens não se envolvem, não querem compromisso, etc., que o motivo, pelo menos em alguns casos, é que eles não superaram um relacionamento traumático anterior, um amor que deu errado. Em seu inconsciente, portanto, eles amam, eles estão sob o efeito do que Freud chamou de fixação da libido, por isso, não estão livres para viver um novo amor, só lhes restando as diversões descompromissadas do sexo.
O luto e a alegria
O que se revela de nosso percurso é que o desafio do homem hoje é o de poder amar e, ao mesmo tempo, preservar sua virilidade. Se, como diz Jaques-Alain Miller, “só se ama verdadeiramente de uma posição feminina; amar feminiza”, como ser viril e feminino ao mesmo tempo? Ora, isso só é possível se o homem conseguir evitar fazer de uma mulher a solução para sua falta. Erroneamente, a experiência amorosa se tornou a via pela qual o homem acredita resolver o problema da sua falta. É preciso que ele se dê conta de que essa Mulher, assim concebida, não é nada além da parte de si mesmo (a costela) que está definitivamente perdida. O objeto está perdido. É preciso, pois, fazer o luto dessa perda. Como diz Lacan, “o homem tem que fazer o luto de encontrar em sua parceira sua própria falta”. O luto é um processo dolorido, triste, mas que leva a um paulatino desapego. É isso que lhe permitirá que o objeto amado não se torne insubstituível e que ele se aposse da certeza de que a alegria de um novo encontro amoroso estará sempre em seu horizonte.
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Cristiano Pimenta é graduado em Filosofia pela USP, mestre em Psicologia Clínica pela UNB e membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e da Delegação Geral GO/DF da EBP.
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