Você nasce menina, bebê do gênero feminino. Logo nos primeiros segundos, uma enxurrada de roupas cor de rosa e lacinhos cobrem seu corpo que ainda nem se mexe direito. Com poucos dias, alguém faz uns furos que machucam suas orelhas e coloca um par de brincos que inflamam, coçam e te dão os primeiros indícios de que sua aparência conta mais do que deveria.

Você aprende a caminhar, aprende a rebolar ainda criança, aprende que menina não pode sentar de perna aberta. Aprende a falar e aprende que menina não fala palavrão, que tem que ser delicada e fofa em qualquer ocasião.

Você cresce, vai para a escola e percebe que as “do seu gênero” não se misturam com o gênero dos meninos. Enquanto vocês jogam vôlei e fazem ginástica artística, eles são incentivados no futebol e nas artes marciais (leia-se violência self defense). Eles parecem mais fortes fisicamente, são debochados, andam largados, e você se vê diante de protocolos para algo simples como frequentar as aulas do primário.

No ginásio, seu corpo muda e seu coração bate diferente. Um dia você nem percebe e se apaixona, e pensa em alguém que provavelmente nem sabe o nome e provavelmente nunca saberá.

Conforme seu corpo muda, você precisa prestar mais atenção em como se veste e se comporta. Na rua os homens te olham com tanto fervor que você tropeça sem saber o motivo. Eles assobiam, te elogiam, te desejam. E você estava só indo comprar pão.

A escola acaba, você acha que sabe o que é amor, beija uma boca aqui e outra ali. Você quer um beijo quente e apaixonado e recebe um combo de mãos que passeiam pelo seu corpo sem você ter dado permissão.

Alguém te pede em namoro e você diz sim esperando flores, chocolates e frases bonitas de filmes e séries que você cresceu vendo no repeat. Os príncipes das telinhas caem na sua vida real e você cai na real de que tem algo errado quando te convidam pra um filme em casa e, ao invés de pipoca e refrigerante abraçadinhos, você encontra um pacote de camisinha e um óleo de amêndoas na mesa central. Nem pronta você está, mas nem sempre você consegue dizer isso. O que vão falar de você, afinal?

Então, vão falar. Vão falar que você é fácil por se entregar de cara ou vão falar que você é frígida porque saiu correndo. No jogo das fofocas, você perde. Na verdade, você nem joga, você é somente o peão.

Você começa a trabalhar e seu chefe te usa como exemplo logo no primeiro dia e na primeira reunião. Ele te puxa pela mão, você assustada o acompanha e, sem nem se defender, escuta “Vejam essa menina com cabelo de empregada doméstica, vocês acham que dá para ela trabalhar com o cabelo solto?”. Nauseada, você fica com as bochechinhas rosadas diante de toda a empresa e, no dia seguinte, coloca um formol no seu cabelo para ele ficar escorrido e você nunca mais precisar passar vergonha por ser quem é.

Mas você continua passando. Seu novo namorado fica sozinho com você em casa, rasga seu shorts com a tesoura dizendo que é um desejo antigo e, meses depois num jantar qualquer, comenta sem perceber que odiava aquele shorts curto demais e que “ainda bem que acabou com ele”. Seu shorts favorito.

Você se muda de país e pensa que as coisas serão diferentes e vê homens falando línguas que você não conhece e salivando quando ouvem que você é brasileira. Os olhos deles faíscam e você se sente um pedaço de bife pendurado na geladeira do açougue.

Você volta. Você vira líder, você sobe uns degraus profissionais, assume um cargo de gestão e quem sabe agora as coisas não mudam e algum respeito aparece. Seu chefe, nordestino crente do coronelismo, resolve que o melhor horário para conversar sobre a estratégia da empresa é a noite, depois do expediente, quando você está finalizando as últimas tarefas do dia vendo o pôr do sol naquele paraíso banhado pelo mar. Ele entra na sua sala bêbado, tranca a porta dizendo que quer privacidade para tratar de certos assuntos e você finge que escuta enquanto procura qualquer objeto na mesa que te ajude a se proteger. Quando a cena se repete e você pede demissão, ouve da boca dele que “achou que havia contratado uma leoa e você nunca tinha passado de uma gatinha”.

Você tenta fugir dos abusos, mas eles são estruturais e vão estar sempre com você. Quando visita sua família, seu pai manda você lavar a louça enquanto bebe cerveja e vê futebol rindo com o seu irmão. Quando vai ao banco, não pode sonhar usar um decote em um dia quente porque seus peitos vão chamar a atenção. Quando se despede de um casamento abusivo, é chamada de louca e convidada a procurar um psiquiatra.

Ser mulher de carne e osso é isso. É lidar com quedas e rasteiras diariamente. É gritar quando não aguentar mais. É estudar até varar a noite. É se reinventar e ser dona de si. É ser independente, dona do próprio carro e da própria vida. É dar as costas. É suar frio. É sentir medo no ponto de ônibus. É ter você a camisinha na carteira. É ouvir que um bom casamento resolve sua vida e decidir casar consigo mesma e com seus próprios sonhos. É ser princesa nas redes sociais e guerrilheira nas batalhas diárias contra o machismo e o preconceito. É dar seu jeito. É arrumar a casa. É talvez ter um par, talvez largar um par, talvez se reconectar consigo, talvez ter a sorte do amor verdadeiro.

É dizer “chega” todos os dias, mesmo que te odeiem, mesmo que você chore, mesmo que doa para caralho. Porque a mulher luta todos os dias pelo direito de viver com respeito e de ser, pensar, se vestir e se comportar como bem entender. Doa a quem doer.

Ana Carolina Faria Bortolo

Turismóloga e Administradora de Novos Negócios por formação. Escritora, pintora e dançarina por vocação. Planejadora de eventos, bartender, agente de viagens e vendedora por profissão. Garçonete de navio por opção. Vi o mundo e voltei, e de todos os rótulos que carrego na bagagem, só um me define bem: sou uma ótima contadora de histórias.

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Ana Carolina Faria Bortolo

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