“O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera. (…) os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam.”
“Sermão do Bom Ladrão”,
Padre Antônio Vieira
Por Elder Dias
O Brasil parece mais corrupto do que nunca. E o fato de o escândalo na Petrobrás ser considerado por muitos o maior rombo aos cofres públicos da história da humanidade pode, de certo modo e a partir de certo ponto de vista, dar argumento a que isso se imponha como verdade. Mas, mais do que disputar a mensuração quantitativa do que está ou esteve sendo roubado da Nação, parece importante entender a corrupção em sentido histórico. Afinal, se até para o Big Bang suspeitam de uma Origem, o mensalão, o trensalão e o petrolão não são frutos do nada ou filhos do vácuo. O comportamento “sui generis” em relação ao fenômeno — seja como autor, espectador ou alguém entre essas duas pontas — também merece uma análise: por que se ataca tanto e de tantas formas os cofres públicos? Do lado de lá, por que criminosos ou acusados de crimes contra o País infestam as casas legislativas e os palácios, em vez de gente comprometida com a política stricto sensu, aquela do radical grego “polis”? Do lado de cá, por que temos tanta complacência com o “rouba mas faz”?
Voltemos 515 anos no tempo. Pero Vaz de Caminha, autor da carta que anunciou o descobrimento do Brasil, aproveitou o momento glorioso de que participava para fazer um pedido conveniente ao rei Manuel I. Não era um emprego a um familiar, como se costuma erradamente repetir, mas, sim, o perdão de seu genro, condenado ao degredo na África por assalto a mão armada: “E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé [que, com a Ilha do Príncipe, forma São Tomé e Príncipe, país africano ex-colônia portuguesa] a Jorge de Osório, meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, 1º dia de maio de 1500.”
Foi com certeza o primeiro caso de tráfico de influência registrado em terras brasileiras, ainda que amparado legalmente já que o rei tinha poder para conceder indultos. Mas Pero Vaz, que morreria em combate em dezembro daquele ano na Índia, não praticou nepotismo nem pediu emprego. O fatalismo com que se remete a esse episódio parece querer um certificado simbólico de que a corrupção está no DNA do País.
Por isso, é preciso ir além. Professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) no campus de Franca, Denise Moura é também doutora em História Econômica, com ênfase no Brasil colonial e imperial. Ela explica que as “mercês”, como eram chamados os favores, eram um costume nas relações de poder de Portugal. “Para aquela época, não há nada de errado, ou moralmente incorreto, no que então fez Pero Vaz”, afirma a professora.
Na verdade, a corrupção no País, como se vê, não nasceu com o missivista. Mas suas sementes foram lançadas logo em solo nacional, não com dolo, mas certamente com culpa, pela própria Coroa portuguesa. A partir do início da colonização, dadas as condições em que ocorreu, a tal erva daninha germinou. Como escreveu Pero Vaz, nesta terra “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo”. A corrupção vingou facilmente.
Povoar o Brasil, um sacrifício
Para ocupar a nova possessão, evitando deixá-la vulnerável a outros povos exploradores, como espanhóis e holandeses, Portugal partiu para uma política de incentivos à colonização. O pequeno reinado europeu era potência marítima, mas não conseguia arregimentar voluntários para migrar ao Brasil, algo visto como um sacrifício ou até um castigo. Aliás, mais do que isso: como em colônias lusitanas na África, também para cá vieram condenados ao degredo.
Para manter a tutela do território à direita da linha do Tratado de Tordesilhas, o jeito foi oferecer benesses em altíssima escala para quem se dispusesse a ocupá-lo. Surgiam as capitanias hereditárias, cujos donatários usufruíam de superpoderes em seus limites. O rei de Portugal lhes concedeu privilégios jurídicos e fiscais e, entre outras atribuições, podiam fundar cidades, autorizar construções, cobrar impostos locais e decretar pena de morte para certas pessoas (geralmente escravos ou de classe baixa).
“O Brasil que os reis portugueses não queriam perder — mas no qual também não queriam viver —, tornou-se uma grande oportunidade para ser fidalgo e rico, mas com a obrigação de organizá-lo”, resume Denise. Todavia, mesmo com todas as regalias, algumas capitanias acabaram abandonadas. Ao fim, apenas a de Pernambuco e a de São Vicente prosperaram.
Mais: a negligência portuguesa em relação ao que se passava fez com que cada um dos donatários agisse como se fosse o próprio rei. Este é o ponto: de empreendedor de uma missão designada pela Coroa portuguesa, o donatário passava, na prática, a ser o dono de um Estado. Dessa forma, passa a soar menos hiperbólica a comparação do Maranhão a um feudo da família Sarney ou de Alagoas a um curral dos Calheiros. Os coronéis políticos têm relação com os capitães de outros séculos. “Muitos dos atuais mandatários têm em seu sobrenome alguns dos primeiros poderosos”, lembra a historiadora.
Esse efeito colateral da forma de povoamento do País levou a algo mais sério: a efetivação do patrimonialismo, que nada mais é do que tomar como particular aquilo que é do erário. O donatário da capitania nomeava pessoas, que também detinham muito poder; essas também colocavam prepostos em mais posições. “Dessa forma, cria-se um efeito cascata de poder. E cria-se a ideia de que ter acesso a cargos públicos era deter poder. Assim, as instituições públicas foram se formando no Brasil Colônia dentro do mecanismo de doação do cargo público.”
E as pessoas da base? Afinal, havia povão — e como havia — naqueles idos tempos: escravos, índios, pequenos comerciantes, autônomos, militares de baixa patente. O cidadão comum, desde os princípios da colonização, não teve como não confundir “poder” com “aquele que está no poder”. Em uma trágica metonímia, tomou a parte pelo todo. A junção desses fatos poderia, então, explicar a tolerância até da própria legislação com ocorrências de apropriação indébita, peculato, evasão de divisas e outras que estão sempre presentes nos indiciamentos dos chamados “crimes do colarinho branco”. Na visão popular, era assim que as coisas aconteciam. E assim seriam.
Sem fiscalização
Ainda há outra lacuna importante que faz com que o Brasil colonial fosse, por muito tempo, uma terra aberta para a corrupção: não havia instituição fiscalizadora. “O primeiro órgão nesse sentido é o Conselho Ultramarino, criado em 1642”, diz a doutora da Unesp. Importante notar que já havia então mais de um século de colonização. “O conselho era um organismo para coordenar a política externa de Portugal e centralizar as denúncias. O interessante é notar, nos documentos históricos, que o cidadão comum já fazia denúncias de irregularidades. Moradores de determinado lugar podiam escrever — e escreviam — representações ao rei, para denunciar atitudes arbitrárias.”
Mais do que isso, manifestações e protestos já ocorriam desde o período colonial contra os excessos de alguma autoridade local. “Por esse lado, o brasileiro também sempre teve uma postura denunciadora, fiscalizadora, das instituições públicas”, afirma a professora. No Brasil independente do período imperial também não eram poucas as denúncias. Isso ocorria também porque o país vivia então um regime de grande liberdade de imprensa, notadamente após a ascensão de Dom Pedro II.
Sob o manto negligente dos portugueses, o Brasil caminhou quase por si só por muito tempo, com nomeações e mais nomeações. Para conquistar uma “posição” era preciso ter conhecimentos — histórias bem dissecadas na obra de Machado de Assis, por exemplo.
Eleição havia para vereador e juiz ordinário, mas poucos votavam. “E os eleitos procuravam o cargo não porque teriam bons salários, mas pelos benefícios, como andar armado, não poder ser preso, ter regalias”, diz Denise.
Mordomias, tráfico de influência, busca de posições, luta por território. Tudo muito parecido com o que há hoje, nos três poderes. Mas é possível dizer que a corrupção tenha piorado com o tempo? Denise Moura não vê essa “maior corrupção”. “A corrupção hoje é obviamente mais visível, com todo o aparato moderno. É assim também com as guerras. Mas ninguém vai pensar que a crueldade e a violência no Oriente Médio começaram com o Estado Islâmico e seus vídeos.”
E não nasceu também hoje, ou mesmo da era contemporânea, outro sintoma sempre atrelado aos casos de corrupção: a revolta, a indignação. Em 1655, 123 anos depois da fundação da vila de São Vicente, a primeira do Brasil, o padre Antônio Vieira, a maior referência do período barroco da literatura brasileira, proferiu o “Sermão do Bom Ladrão”, que abre este texto. Mais que gritar contra a corrupção, é preciso conhecê-la pelas raízes para, então, combatê-la.
Fonte indicada: Jornal Opção
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