Faltava ar. Pouco antes da uma da manhã cheguei ao pronto-socorro. O noticiário da madrugada resmungava ao fundo, acompanhado pelas tosses e pelos bipes do painel de senhas. Fui atendida rápido até. Minha cara de desespero imprimia mesmo emergência. Bronquite asmática. O pior passou. Não morri. Não hoje, não dessa vez. Ainda. A moça da recepção me chamou. “Débora?”, confirmei com a cabeça. “Preciso atualizar seu cadastro. Seu contato de emergência ainda é o Miguel?”, gelei até a ponta dos pés.
Não via Miguel há um ano. Desde que terminamos educadamente na praça perto de casa. Desde que eu fui chorando descontroladamente e cheia de medo até meu portão. Não pronunciava aquele nome desde que apaguei do celular, como se apagasse junto da vida também. Gelei de pensar se tivesse um treco e Miguel me aparece sem entender. Quer dizer que pra namorado eu não sirvo, mas pra te socorrer tudo bem? Morri de vergonha antecipada. Essa foi por pouco. Se Miguel teria notícias minhas seria de mim divando nas férias num destino exótico ou bonita saindo do salão no sábado. Não semi-morta, não vestida de azul bebê-internação, jamais com um soro enfiado no braço. Ex tinha que ter a consideração mínima de só cruzar com a gente nos nossos ápices. Mas são os nossos dias piores e mais desgrenhados que os atraem.
“Apaga isso daí, moça”, falei sem jeito, admitindo meu fracasso. Parei pra pensar quem botar no lugar. Em tempos tão sozinhos, quem é que a gente coloca no contato de emergência? Não tenho família, parente, primo distante por perto. Não tenho melhor amiga morando na mesma cidade. Não sei o nome dos meus vizinhos. Não quero incomodar a Marta do departamento financeiro do trabalho. Chama quem? Liga pra quem se eu tiver um troço e cair dura no meio da Avenida Paulista? Tenho convivido elegantemente com o fato de que provavelmente estarei sozinha por um bom tempo. Não tô amargurada. Só não quero mesmo. Pura preguiça. Cheguei aos quarenta tão satisfeita com minha própria companhia. É bonito de ver. Não quero interrupções, barulho, drama, caos alheio. Ser ferida pelos outros e se consertar dá um trabalho danado. Quero a paz de uma pia sem louça e o conforto de dormir esparramada. Mais nada. Dá pra ser?
Mas nessas horas, admito, soa lá dentro da gente aquela frase que você também já deve ter ouvido. Ela começa baixinha, aumenta um pouco, e em seguida grita: “Eu vou morrer sozinha!”. Nessas horas de fragilidade, a gente lembra que o outro também é suporte, mão que embrulha o medo pra outra hora, beijo que ameniza a dor, riso deliciosamente inapropriado no meio do desespero. O outro é quem diz: “Tô aqui por você”. Eu, euzinha, tô aqui mais do que ninguém por mim, mas sei que não é a mesma coisa. Reconheço minhas limitações.
Reconhecer que a gente, assim como qualquer outra pessoa, não pode se dar tudo é essencial pra não pirar. Por enquanto, me basto, mesmo que nem sempre eu seja o bastante. “Bota aí, Fábio”, respondi com firmeza. “Fábio de quê?, digitando. “de Melo”, com um risinho sacana. Dei o número da central de orações do panfleto que uma senhora tinha me entregado na rua. E saí rindo e imaginando o susto do padre ao ligarem avisando que a Débora teve um treco. Tem horas que o que salva a gente é a leveza. Essa sim, já me salvou milhões de vezes. Se você tiver lendo isso, desculpa padre. Apesar de que não seria de todo o mal acordar com você no pé da cama do hospital. Ô bença.
Imagem de capa: Antonio Guillem/shutterstock
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