Por Gustl Rosenkranz
Acordei hoje cedo, bem cedo, mas não pude sair logo para passear com o cachorro. Lá fora, a festa de ano novo ainda corria solta. Somente às 10 da manhã pararam de soltar fogos, e pude sair, se bem que até agora, ao meio-dia, alguns renitentes continuam soltando um ou outro foguete, como se as toneladas de pólvora já queimadas de madrugada não bastassem. As ruas estão cheias de lixo, muito lixo, resíduos de uma alegria curta, que se acendeu, subiu, explodiu e se apagou rapidamente. O que mais me incomoda são as garrafas quebradas em todo e qualquer canto, testemunhas da insanidade da festa. Presto atenção para não pisar em cacos de vidros, mas minha preocupação maior é com meu amigo de quatro patas sem sapatos.
Continuamos o passeio no meio de tanto lixo e insanidade, cruzamos o caminho de pessoas com ressaca e mau humor, e fiquei questionando que sentido faz tudo isso. Comemoramos a virada do ano, como todos os anos, ficamos alegres pelo novo ano que chega, mas alegres exatamente por quê? Basta ser honesto, olhar para trás, ver todas as viradas de ano anteriores e constatar que nada muda, só continua, não há renovação, não há recomeço, o saldo no banco fica o mesmo, as dívidas também (ou mais altas, depois de tantos gastos com as festas de fim de ano), a saúde fica do mesmo jeito (ou mais abalada pelo alto consumo de álcool, comida e de tudo), os falsos amigos não se tornam verdadeiros, a obesidade só aumenta e tudo prossegue como sempre.
O mundo está aí, passando por uma enorme crise, com o maior número de migrantes desde a segunda guerra mundial, um verdadeiro êxodo, pessoas que fogem de guerras, de violência, de tortura, de fanáticos religiosos, de seca, de fome, de perseguição política, e muitos desses migrantes estão morrendo afogados ao tentar atravessar o Mar Mediterrâneo para entrar no Eldorado Europa, outros são vítimas de bandidos, traficantes de órgãos ou de gente, sendo mortos ou escravizados por aí. A crise da Ucrânia continua, com um presidente russo que se comporta como gorila, batendo no peito e rosnando, querendo amedrontar. Ebola mata na África, malária e AIDS também. O mundo se aquece, os oceanos são cada vez mais poluídos com nosso lixo, o consumismo nunca foi tão selvagem, com trabalho escravo, também infantil, para nos garantir roupas baratas, ou smartphones, ou seja lá o que for… No fundo, não há nada para comemorar, mas comemoramos assim mesmo. Não vejo sentido, mas respeito, respeito porque somos todos livres para seguir o caminho que escolhemos, porque é nosso direito de irmos em massa para o Portão de Brandemburgo ou à praia de Copacabana já de tarde, para garantir o melhor lugar, para fazer parte bem na frente, e ficar ali plantado por horas, esperando, como se isso tivesse realmente alguma importância (pelo jeito, tem para alguns, para mim, porém, nenhuma!). Respeito o direito de quem queima literalmente dinheiro, soltando fogos em abundância, mesmo que eu não concorde, mesmo achando que isso não é justo diante do número crescente de pessoas famintas no mundo, mesmo achando isso uma perversidade perante os animais, que sofrem com a zoada. Respeito, mesmo percebendo que há pouca reflexão, que muitos vão por ir, Marias vão com as outras, que comemoram porque ano novo se comemora, sem cogitar alternativas, sem ter a coragem de ser diferente, e talvez sem nem ter entendido que isso é possível.
E aqui chego ao ponto que queria chegar, ao tema que quero abordar: o direito que cada um tem de ser diferente, de não caminhar com o rebanho, de viver da forma que escolheu conscientemente, sem seguir convenções, sem fazer o que esperam os outros, de ser realmente livre. Toco nesse assunto por achar emergente, já que percebo um desvio, já que constato uma injustiça, já que não posso calar-me diante disso…
Estava ontem em um grupo de brasileiros na Alemanha, no Facebook, quando li um post de um compatriota, em tom típico de Brasil, mais ou menos assim: <<E aí, galera, onde vai rolar o babado de ano novo hoje ?>>, o que achei normal, já que é comum topar com brasileiros atrás de festa. Mas aí alguém respondeu, uma mulher, dando alguma diga, mas dizendo que ela não iria, pois preferia passar a virada de ano em casa, com seus filhos. Estranhei então a reação do “festeiro”: <<Como assim, em casa? Gente, que tristeza é essa? É ano novo, temos que comemorar, vamos sair!>>. E a coitada da mulher se sentiu desconsertada, começando a explicar sua postura e sua decisão, como se fosse uma ré, a acusada em um processo penal, como se estivesse agindo errado, como se ela simplesmente não tivesse o direito de dizer que não quer comemorar essa maluquice e pronto. E li em outros lugares comentários semelhantes: quem quer ficar em casa, quem se afasta da “loucura” coletiva é taxado de solitário, esquisito, triste, deprimido, frustado, arrogante, metido a besta e um monte de outros adjetivos, rapidamente atribuídos por gente que não reconhece o direito de alguém ser diferente, de nadar contra a maré, de não seguir os outros cegamente… E é exatamente isso que acho injusto: como se não bastasse ter que suportar uma insanidade coletiva, um exagero festivo sem pé e sem cabeça, não gostando, mas respeitando e aceitando, deixando cada um viver como acha que deve, temos ainda que nos sentir mal por pensarmos diferente? Ser diferente, viver diferente é então sinônimo de tristeza, de frustração, de arrogância? Parece-me que aqui a maioria atropela uma minoria, fazendo com que gente diferente se sinta mal, fazendo com que originalidade e independência virem motivos de chacotas, onde pessoas corajosas, que têm o peito de pensar e agir diferente e que merecem admiração, terminam se sentindo mal, acuadas, empurradas em um canto, onde têm então que assumir uma postura defensiva desgastante.
Vejo um desvio, uma inversão de papéis e valores, e foi por isso que resolvi escrever sobre isso. Não acho isso justo e penso que deveríamos refletir profundamente sobre o assunto.
Termino fechando esse texto com duas mensagens, sendo a primeira para aqueles que não toleram os que são diferentes, que acham que todos temos que seguir cegamente o rebanho, as tradições, as convenções, tudo aquilo que nos foi ensinado como certo, ou que simplesmente acreditamos ser certo por nunca termos feito de outra maneira: viva sua vida da forma que achar que deve, você é livre para isso. E se você acha que encontrará sua felicidade no coletivo, no modismo, no mainstream, no consumo exagerado, no correr atrás sem nunca (ou quase nunca) questionar, faça isso. Esse é um direito seu! Pessoalmente não acredito que você será feliz, mas não sei ao certo, já que não há receita para a felicidade. Pode ser que você esteja certo em seu caminho e eu errado em minha opinião. Tudo isso é normal, já que somos diferentes. Mas, por favor, não tente fazer com que pessoas verdadeiramente normais, que têm a coragem de ser diferentes e seguir o próprio caminho, se sintam como se elas fossem os “loucos”, pois isso não é assim. Não é loucura caminhar com as próprias pernas. Loucura é se deixar levar pelo “rebanho”, sem nunca questionar o percurso.
Já a segunda mensagem é para os corajosos, para aqueles que têm o peito de ser diferente, de pensar com própria cabeça e seguir o próprio coração: continuem assim! Isso é bom, muito bom! Sei que nem sempre é fácil, sem que isso muitas vezes faz com nos sintamos sós, mas não mude esse jeito jamais, pois é ele que faz de você aquilo que você realmente é: uma pessoas singular e realmente especial. Não é triste ter a coragem de optar por passar o ano novo em casa, tranquilo, sem grandes festas e balangandãs. Triste é ter perdido essa capacidade
Desejo a todos de todo coração tudo aquilo que costumamos desejar todos os anos, repetindo, como papagaios, sempre a mesmas coisas: muita saúde, paz amor, prosperidade, sucesso, realização dos sonhos…
Mas também:
uma maior capacidade de reflexão, uma maior coerência, mais responsabilidade, mais maturidade, mais respeito, mais autenticidade, mais sinceridade e muita coragem e liberdade de seguir o próprio caminho.
Assuma seu direito de ser diferente, de não caminhar com o rebanho, de viver da forma que escolheu conscientemente, sem seguir convenções, sem fazer o que esperam os outros, de ser realmente livre e feliz.
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