“Seja como você é. De maneira que possa ver quem é. Quem é e como é. Deixe por um momento o que deve fazer e descubra o que realmente faz. Arrisque um pouco, se puder. Sinta seus próprios sentimentos. Diga suas próprias palavras. Pense seus próprios pensamentos. Seja seu próprio ser. Descubra. Deixe que o plano pra você surja de dentro de você.” Fritz Perls
Pertencimento é uma necessidade vital, somos seres sociais, dependemos do outro para existir. Nada disso é novidade. Mas tenho constantemente me perguntado: qual parte minha devo alienar, a fim de pertencer a um determinado grupo? Quais são as vozes que ficam caladas, para que eu possa me sentir amada?
“Saúde é um equilíbrio apropriado da coordenação de tudo aquilo (e aqueles) que somos” dizia Fritz Perls, um dos principais nomes da Gestalt-terapia. Na visão gestáltica, possuímos um organismo completo e inteligente que se autorregula de acordo com o meio em que está inserido. E é através desse processo de autorregulação que desenvolvemos determinados padrões de comportamento em resposta ao que o meio exige de nós, bem como alienamos importantes partes nossas (e, às vezes, menos “populares”).
As muitas regras sociais e morais, a organização de nosso sistema familiar, os ambientes e pessoas ao nosso redor, dentre tantos outros fatores, compõem as diversas crenças e introjetos que, ao longo dos anos, moldam nosso comportamento. Nossa grande tragédia está no fato de que, quanto mais nos moldamos (a fim de sermos aceitos), mais partes nossas são alienadas e menos autênticos nos tornamos. Dessa forma, aniquilamos pedaços importantes de tudo o que nos torna o que somos: únicos e irrepetitíveis. E, assim, anulamos nossa melhor parte, nossa essência.
Perls dizia que estamos sempre representando um papel, manipulados ou manipulando o meio, em prol de alcançar o que desejamos e de suprir nossas necessidades mais latentes. Essas representações existem em maior e menor grau, dependendo do nível de consciência e autoconhecimento de cada um. A representação de um papel significa que minhas respostas não são espontâneas e honestas; que estou constantemente suprimindo meu querer mais irracional e visceral.
Isso porque nem sempre podemos explicar nossos desejos de maneira lógica, porém, para os valores morais da sociedade, o que não pode ser logicamente explicado, ou justificado não pode ser validado. Assim, viro plágio, engesso minhas respostas, copio minhas ações. Quanto mais cristalizado é meu comportamento, menos autêntico sou.
A Gestalt-terapia entende toda resposta não autêntica como neurótica.
Nesse contexto, as redes sociais atuam como amplificadores de uma vida anunciada, ensaiada e editada. Na internet, podemos representar nosso melhor papel, mais ainda, aprimorá-lo. Esses papéis virtuais são perigosos, porque endossam uma narrativa romântica de felicidade fácil e de perfeição, de relacionamentos desprovidos de grandes conflitos e negociações. A rede permite ensaios, filtros e edições que a vida real não permite. E uma vida ensaiada não é apenas caluniosa, como também bloqueia o fluxo criador e transformador que podemos devolver ao mundo. Ela nos priva de viver com prontidão, improviso, espontaneidade e (muita) imperfeição. Ela nos priva da liberdade de sermos quem de fato somos.
Anunciamos nossos passos, nossas melhores experiências, onde estamos, com quem estamos. Nas redes, cabe nosso eu inteligente, solidário, justo, ativista, alegre, bem sucedido. Gritamos nossas revoltas diante das injustiças do mundo, nossa fé e esperança de um futuro melhor. Tudo meticulosamente pensado para caber no olhar alheio. E, mesmo quando dividimos nossas dores, são dores editadas, aquelas que podem ser acolhidas pelo olhar compassivo do outro.
Dessa maneira, só me arrisco a compartilhar o que de certa forma pode ser aceito e validado pelo outro. E, quando isso não acontece, tenho a opção de deletar. É preciso cautela ao equilibrar e dosar o uso que fazemos dos canais virtuais, pois é muito fácil e sedutor buscar reconhecimento e acolhimento através deles. Tanto quanto é vazio e ilusório. Nunca estivemos tão conectados, nem tão solitários.
Uma vida anunciada é desprovida de contato real e de intimidade. E a intimidade é o que de fato nos desnuda e nos conecta em um nível muito mais profundo e verdadeiro. Quando me privo de viver com prontidão, quando não me utilizo dos recursos que tenho e da expressão de minhas emoções de maneira instantânea e espontânea, sou apenas mais uma personagem. E, assim, aos poucos, minha vida anunciada e encenada me torna mais cristalizada, neurótica e solitária.
As palavras de Perls nos lembram como é libertador o trabalho de tomada de consciência, ainda que custoso. “Eu acredito que esta é a grande coisa a ser compreendida: a tomada de consciência em si – e de si mesmo – pode ter efeito de cura”, escreveu ele. Esse é um trabalho interno e que deve ser feito em silêncio, longe dos holofotes.
Quando criamos consciência de nossos processos, podemos elaborar respostas mais imediatas e autênticas aos nossos conflitos e integrar partes importantes nossas que foram censuradas. Podemos viver com prontidão e sem ensaios. Só assim seremos completos, só assim estaremos em paz e devolveremos algo inteiramente único para o mundo. Sim, ser autêntico requer muita coragem e um caminhar solitário e vulnerável. Mas quem o faz vive uma vida em liberdade de ser quem se é; devolve ao mundo calor, víscera e pulso.
Afinal, não é isso que chamamos de vida?