Por Ana Paula Tavares
Na minha aldeia, a culpa era casada e tinha filhos. Todos com cara de culpa. A carga devia ser enorme porque caminhava carregada sob o peso de imaginários dedos estendidos na sua direcção e como mãe e culpada encontrava na comida uma forma de sobreviver atrás das panelas a cozinhar sentimentos para os filhos e os outros comerem. Um misto de culpa e ressentimento desenhava na sua cara mapas antigos de difícil leitura, sobrecarregados com os sinais do pecado em amarelo e ocre por entre as rugas.
A felicidade e alegria com que todos nós, os outros, teimávamos em incendiar as ruas da aldeia estavam arredias da casa da culpa, dos filhos da culpa e dos animais do quintal, sempre mais magros e ferozes do que os nossos. Nós éramos donos de um manual de avaliação que nos era fornecido em casa e a partir dele partíamos para a conquista do mundo usando os filhos da culpa como nossos serviçais, ou escravos, melhor dizendo. Se queriam brincar tinham que cumprir as regras que eram básicas mas importantes na distribuição das tarefas pesadas de bestas de carga à debulha do milho. Sujeitos e agentes das boas intenções, aplicávamos sem remédio as receitas da casa: os culpados tinham que expiar e arcar com todas as dificuldades. Nossa liberdade era assim interminável, eles, os nossos avessos estavam sempre presentes para nos fazer atravessar o conflito num mundo a várias dimensões onde tudo – actos, delações, desejos podiam ser sempre iluminados pela culpa dos outros.
A nossa conduta, como a dos nossos pais, era sempre a ideal, se comparada com a vida da culpa, seus filhos, seus animais e sua sagrada submissão aos princípios de subir o mundo sob o juízo dos outros. Os princípios que regiam as nossas casas ficavam lá dentro, rigorosa e severamente ordenados pela mãe, pelas avós presentes e nos casos mais graves pelo pai, que de vez em quando aparecia. As nossas mães faziam um rol das culpas e quando o pai chegava éramos chamados um a um para cumprir um castigo. Vivíamos num mundo a duas morais: a de dentro (guardada a sete chaves pela família) e a de fora, onde só se via a culpa, sua casa, seus filhos e animais. Também ela não parecia incomodar-se, tão ocupada andava a fazer comida para os seus filhos e animais, a cuidar da casa para a proteger da chuva, das pragas, dos animais e dos filhos. Não tinha tempo para pensar no mal de viver e assumia bem (em nosso entender) os dedos estendidos do resto da aldeia, bem como o lugar no fundo da igreja que lhe estava reservado. Nunca nos ocorreu perguntar de onde ela vinha, que parentes do lado esquerdo da vida lhe tinham determinado o percurso. Também se alguém tentava, os olhos da avó ficavam compridos como se houvesse um pacto alargado pela culpa que a todos servia.
Para lá da luz crua do silêncio circulava uma história da morte de homem e marido com uma faca e de uma confissão (“sete vidas ele tivesse”) que implicaram degredo e uma vida nova enquanto culpa e transmissora desse sentimento à casa, seus filhos e seus animais.
Nunca lhe percebemos vergonha, mas sim a ideia de cumprir um serviço público – o de ser a eterna culpa dos outros, casada e com filhos.
Ana Paula Tavares
Poetisa e historiadora nascida em Lubango, na província de Huila, em 1952. Obteve o grau de Mestre em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa.
Fonte: Rede Angola
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