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“Portanto, nem todo contato é saudável, nem toda fuga é doentia. Uma das características do neurótico é não poder fazer bom contato, nem organizar sua fuga.” Fritz Perls
Existe uma linha tênue entre a escolha de permanecer e a coragem de partir, muitas vezes é difícil mapear racionalmente os motivos que nos fazem ficar em uma relação que se mostra disfuncional ou tóxica. Dentro da abordagem da Gestalt-terapia, sempre que permanecemos em uma situação, mesmo reconhecendo que ela não é saudável, é porque existe alguma necessidade sendo suprida em tal dinâmica. O que acontece em um estado de neurose, ou quando estamos dessensibilizados, é que muitas vezes não conseguimos reconhecer essa necessidade para supri-la da melhor forma. Entendemos, de alguma maneira, que temos que ir, mas não conseguimos entrar em contato com o que nos faz ficar, e assim ficamos paralisados, imóveis, sem a capacidade de tomarmos escolhas mais saudáveis para nós mesmos.
Na tentativa de justificar a covardia que nos paralisa e corrói, contamo-nos histórias e meias verdades que, geralmente, começam com uma promessa ilusória de que o amor tudo deve suportar, de que amor verdadeiro é incondicional. Assim, aceitamos as migalhas que nos são jogadas e o pouco, muito pouco, que se torna cada vez mais escasso. Enquanto vivemos do pouco que nos é dado, aniquilamos toda riqueza e toda grandeza que existe em sermos capazes de escolher, para nós, caminhos mais harmoniosos e saudáveis, de troca e crescimento, de assumirmos as verdades de nossas fraquezas e necessidades não ou mal supridas, de sermos responsáveis por buscar supri-las de maneiras mais autênticas e menos caóticas.
Como muitos relacionamentos estão fundados nos frangalhos que damos e recebemos, temos uma falsa impressão de que a escassez é normal. Para nós, mulheres, um agravante: somos criadas para tudo suportar, para sermos tolerantes, para nos adequar. A sociedade patriarcal faz questão de nos lembrar, durante todas as fases de nosso crescimento, da importância da adequação, de anulação, de ficarmos caladas – ou homem nenhum vai nos amar ou tolerar.
O que ninguém menciona é que nós também não gostamos de diversas coisas nos homens, mas, ao contrário deles, somos o tempo todo convidadas a tolerá-las. E o custo é alto: adequamo-nos, podamo-nos e nos diminuímos para caber dentro de uma dinâmica de relacionamento que não contempla nem metade de nossa grandeza. Na solidão das dores que brotam de um viver tentando se adequar – mas sempre se sentindo inadequada –, nossa alma clama por aceitação e liberdade.
Fritz Perls, um dos pensadores da Gestalt-terapia, falou sobre essa adequação e como a necessidade dela acaba com o ser humano autêntico, que é funcional para seu meio. Segundo ele: “Quanto mais a sociedade exige que o indivíduo corresponda aos seus conceitos e ideias, menos eficientemente ele consegue funcionar”. Ou seja, a exigência de adequação aniquila a possibilidade de vivermos uma vida mais autêntica e gera neurose. Não é à toa que estamos vivendo tempos com o maior número de transtornos mentais e neuroses da história da humanidade.
Então, mais do que se adequar, é preciso ter coragem para partir. Partir quando o pouco é quase nada, quando o outro não consegue enxergar a beleza que existe em nossa inadequação. Quanta essência existe em nossa indignação; quanta autenticidade vive em nossa frustração; quanta liberdade habita em um grito de basta!
É preciso coragem para partir antes que nos partam, para seguir quando o outro traz à tona apenas o pior de nós, quando a alma está cansada de adequar-se, de tudo suportar. Não, o amor verdadeiro não é incondicional, nem tudo tolera. Ele é exigente, provoca-nos, instiga e questiona, para que a gente se sinta vulnerável, desconfortável e inadequado. E para que a gente sinta quanta vida brota da nossa inadequação. Amor também é feito de limites. E, quando uma relação nos exige medir as palavras, autocontrole e adequação é quando entendemos: é preciso ter coragem e saúde emocional para organizar nossa fuga e partir.