De apertos e sinhazinhas

Ainda bem menina descobri que as roupas e a vida dos meninos eram mais divertidas do que a minha. Nos domingos, eles pulavam da cama e numa velocidade incrível ganhavam as ruas da Tijuca para brincar.

Comigo era diferente. Sempre saía depois deles, pois havia mais panos para cobrir o corpo e o maldito cabelo para pentear. Mamãe pegava a escova e começava a operação Desembaraçamento. Pôr em ordem os fios rebeldes. No caso da minha cabeça, todos.

Um estado de insurreição ampla e irrestrita. Doía muito. Mas mamãe recitava o versinho: Sinhazinha está tão bela, pois então aguente mais. Pois então se estou tão bela, por favor aperte mais.

Eu ficava doida. Porque não queria ser sinhazinha e muito menos sentir dor. É claro que os meninos também sentiam dor, mas em geral acontecia quando eles se machucavam. Quando caíam da bicicleta ou brincando de pegar peixinhos no fétido rio Maracanã.

Enquanto isso, eu vivia a tortura de ter os cabelos desembaraçados para mantê-los femininos. Como se o feminino rimasse naturalmente com sacrifício. Eu observava minhas tias e primas mais velhas entrando e saindo do banheiro como se fossem atrizes trágicas se preparando para subir no palco.

Toalhas enroladas no cocuruto, cremes esparramados nos rostos e braços, sobrancelhas desenhadas a lápis. Para raspar os pelos das pernas e axilas usavam a lâmina Gillette (que trazia um homem bigodudo na embalagem). Eu me perguntava: Elas estão se preparando para uma guerra?

Invejar as roupas dos meninos causava tristeza na minha mãe. Diria até que isso a perturbava pra valer. Eu queria um short, ela comprava um vestido. Sonhava com um tênis, ela me presenteava com sandálias de fadinha. Uma vez pedi um par de botas. Veio a resposta: De jeito algum!

A cena dramática do embate mãe e filha se deu nos meus 6 anos. Festa junina na escola com a óbvia ciranda. Meninos e meninas fantasiados de caipiras. Mamãe me olhou e achou que faltava um toque a mais. Costurou no meu par de conga branca duas rosas de plásticos. Enormes! Ela adorou. Eu chorei de humilhação.

Hoje sei que para cuidar da saúde mental nada melhor do que deixar a infância na infância. Guardá-la em um pendrive e acessá-la quando nos convir. Mas no desktop o que devemos fixar é o tempo presente. A vida do agora.

Nesse agora, não cobiço mais as roupas masculinas. Ao contrário, acho que as mulheres dão de dez em criatividade e inovação. Repare na alta taxa de diversidade com que nos vestimos. Formatos, cores, texturas. Conquistamos as calças compridas sem abandonar as saias.

Ao caminhar na avenida Paulista, reparo nos homens. Observo uma multidão de ternos e gravatas. Penso: Poderia ser meu pai andando por aqui. Verdade, as gravatas estão muito mais coloridas. Os ternos mais alegres. Mas, meu Deus, seguem sendo ternos e gravatas!

Por outro lado, não encontro nenhuma mulher vestida como mamãe quando jovem. Mudamos. Mas as grifes de sapatos ainda não acompanharam isso. Ao comparar calçados para mulheres com sapatos para homens, percebo que a redenção ainda está longe.

Os femininos são bem mais estreitos e incrivelmente incômodos. Como se a revolução tivesse se iniciado pela cabeça, descido pelo tronco e estancado nos pés. A sinhazinha ainda diz: Aperte mais.

Fernanda Pompeu

Fernanda Pompeu é escritora especializada na produção de textos para a internet. Seu gênero preferencial é a crônica. Ela também ministra aulas, palestras e workshops de escrita criativa e aplicada. Está muito entusiasmada em participar do CONTI outra, artes e afins.

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