Por Nara Rúbia Ribeiro
Ouvi, certa vez, uma lenda do fim de um mundo. A história era quase assim…
O fim começou com um passarinho, uma tia nada moderna e um menino muito ocupado que aniversariava.
A tia chega com um passarinho engaiolado. Um pássaro azul claro, cujas pontas das penas ganhavam um tom mais acentuado. A gaiola, de tão leve, tinha lume de abstrato e veio recoberta de um tecido de renda, no capricho da tia.
– É seu presente de aniversário! Aqui está o alpiste. Também não se esqueça de dar água pra ele, não!
– De onde me saiu essa tia? Questiona-se o menino, no auge da sabedoria dos seus nove anos, agora completados.
Tia sem antena moderna. Desconectada do mundo. Se melhor orientada fosse, daria ao menino um game de última geração, brinquedos da alta tecnologia, um novo tablet, um iPad ou qualquer outra engenhosidade a tornar-se obsoleta em tempo record. Algo descartável, sem carne, sem vida, sem ossos: sem alma.
O que salvou algum resquício de alegria ao menino foi a ressalva da tia:
– “E ele canta,viu!” Afirmativa que de algum modo surpreendeu o menino, no que esboçou um sorriso.
Assim o passarinho, por instantes, desafiou a atenção do menino. Cantava, embora baixinho e pouco. Voava de um lado para o outro, em seu minúsculo cativeiro.
– Pai, ele pode chamar Bird Man?
– Claro, filho, como quiser. Respondeu sem pensar o padrasto, enquanto ajeitava a gravata.
– Beijo, vou indo pro trabalho.
A comida na geladeira, seria esquentada em breve tempo no micro-ondas. A mãe, no trabalho desde muito antes do menino acordar. Embrulhados em plásticos hermeticamente fechados, doces com corantes artificiais desfilavam formatos de frutos diversos. Agora, tudo era tão artificial que, para se reconhecer o sabor dos frutos, se fazia necessário usar produtos químicos. A vida necessitava de artifícios.
Amigos virtuais o chamam, como se fossem velhos conhecidos. Os professores, todos on line. Ele clica em uma tela e o mundo todo se abre sob o seu olhar de homem do futuro e muitas notícias disputam os seus sentidos todos.
O infinito da informação, a infinitude do conhecimento, tudo ali, aos seus pés. Pobre criança! O infinito não pontuado o que é, senão um nada disfarçado de inteiro?
O menino, por tempos, se esquece do pássaro. Quando dele se recorda, percebe que o pequenino alado já não consegue cantar, embora ainda se mexa lentamente.
– Canta, Bird Man! Será que nem pra isso você presta mais?
E o pássaro silencia-se na fraqueza da sede e da fome, como se se envergonhasse da desumanidade dos homens.
O menino olha os recipientes de água e comida e percebe que estão vazios e secos, mas sentencia:
– Não come e não bebe até cantar, passarinho mimado! E pega a gaiola e a leva à varanda da casa, deixando-a sob um sol causticante do verão.
– Acho que o sol vai ser bom pra você acordar.
E o menino corre à sala e retorna aos jogos: – Pega, pega. Mata, explode a cabeça dele. Vou recuar e você joga a bomba. Anda!….
E o passarinho acorda de um sono delicado e austero. Ao abrir os olhos, percebe uma invisível mão girar a maçaneta da portinhola de seu cárcere. A porta se abre e ele e entende que pode partir… E voa e se deslumbra do céu, e se encanta da luz.
Nesse momento ele vê o Sol e a sua alma se apieda do grande astro, pássaro de luz desprovido de asas, condenado a tentar degelar, por eternidades interias, o coração de homens que se fizeram desprovidos da emoção para abraçarem a o pragmatismo de um tempo.
Comovido, o pássaro volta à varanda e segura e suspende, em seu minúsculo bico, as grades de sua antiga prisão. E assim ele voa ao encontro do Sol. Seu canto faz com que o astro rei compreenda a dignidade de seus propósitos, e se permita aprisionar-se.
O passarinho aprisiona o Sol em sua quase abstrata gaiola e o leva a visitar e a aquecer outros mundos. Mundos mais condizentes com a luz, mais afeitos ao canto, mais atentos ao azul e à beleza que os cercam. Cujos homens se permitissem o exercício de sua pessoal humanidade.
E do mundo do menino ocupado nunca mais falar se ouviu.
Escritora, advogada e professora universitária.
Administradora da página oficial do escritor moçambicano Mia Couto.
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