De um amor pródigo para o infinito

Já faz algum tempo. Eu aprendi árduo a saber que o tempo, medida precisa, é um sentimento solitário. Os dias correm em mim como água salgada. Sinto-me enrugada como um afogado. Encharcada. Me perdi em oceanos lodosos – lá no fundo tem um museu de náufragos.

Temi dos dias doces o fim. Nunca foram. Tive medo dos rios, porque vão em uma direção só. Nunca voltam, nunca viram, nunca revoltam. Os lagos – nunca vão. Nunca soube: lago, rio, mar? Azul, apenas. Eu não sou bem lá navegante.

Ser do ar, dos voos longos no infinito estável. A transparência do que se sente, mas não se vê – vento, ar – “você já respirou fundo hoje?”. Agora percebo: azul-céu. Talvez água apenas por medo. Mas azul no céu inteiro. Não percebi antes. Mergulhar era modo de dar fim. Navegar sem ser navegante, mergulhar sem ser água, condenar o azul… que culpa? Azul no céu inteiro.

E eu mergulhei tanto sendo ave, não percebi. Não era água, era céu. Fui tão longe e sempre sob ele – dei as costas. Nunca vi. Agora contemplo, de longe, todo o céu que ignorei. Como não soubesse mais alçar voo, repouso no receio. – “Preciso trabalhar, tenho asas para sustentar!”. Quem sabe um dia, o tempo. Os dias correm em mim como uma gota de suor gelado. Sinto calafrios como um febril. Já faz algum tempo. Um sentimento solitário.

Falo, sei, como se fossem anos. É que eu sou dos tempos dos relógios de areia e das viradas da lua. Eu não tenho os segundos em meu favor. Todas essas subdivisões. O corpo sente o tempo a cada morte, estão todas em mim, cada morte, acontecendo, enquanto o tempo, cada célula que nunca viveu mais que um suspiro, o corpo revolto, a dor, todas querem uma chance, mas é apenas um dia, nada mais que um dia para viver. Mas eu aprendi que o tempo é um sentimento solitário. Eu tentei te contar…

Enquanto estive voando à procura do azul, eu nunca parei para olhar o céu. Via-o apenas refletido no mar, nos rios, nos lagos. Eu nunca soube se. Mergulhei. E no fundo havia lodo – um museu de corais coloridos. Nenhum azul. Me perdi. Agora, deserto de nós. E eu não sei voltar para casa. Vejo azul, de longe. Os dias correm em mim como areia fina. Sinto-me como o próprio tempo que aguarda.

Já faz algum tempo. Muitos tempos sucessivos. Eu tenho os dias. Nenhum segundo em meu favor. Vivi ciclos inteiros de história a cada semana. Tive guerras civis, revoluções, civilizações que vieram e já se foram, fui início e fim do mundo, mas agora, sou apenas um pássaro encharcado tentando redescobrir como pôde voar sob o céu sem nunca parar para ver…

O meu pequeno coração de ave é do tamanho do mundo, mas as vezes não se cabe. Sinto todos os ares em mim, e não sei se expansão ou explosão. Os ossos finos, feitos para vagar de braços abertos, atrofiados e trêmulos pelo mergulho prolongado. Os olhos, a chave, será tarde demais? Mas. Eu sempre pensei que fosse tarde demais.

Outra primavera se aproxima. O tempo. Esse sentimento solitário. Os anos entre nós. Pensei até que tivesse que lutar, armei-me de nadadeiras imaginárias. Tão estranho. E agora? Imóvel. Eu não sei voltar para casa. Distante, eu vejo o azul. Não sei se posso. Aguardo um sinal. Um convite. O cansaço. Os dias correm em mim como o inverno russo.

Essa ilusão de repouso. Essa ilusão de passado. Eu vejo as fotos da sua infância com sorrisos de ternura. Conheci os afetos do inexplicável. Como fosse um reconhecimento inverso de quem um dia no início conheceu e há muito tempo não vê, mas sabe: é. Eu me recordo do que nunca vi como se o tempo implodisse. A vida. Esse sentimento infinito. Esse amor solitário, como o tempo sentido – eles se entendem.

Invento involuntárias lembranças de quem namorou em silêncio, naquela ingenuidade satisfeita e sem cobranças que não sabe o que esperar do amor, apenas sente. – “O menino está vivo?”

Um lance de dor corta minhas divagações. “Eu tenho asas para sustentar, e elas estão imóveis”. Imagino que o menino, estivesse vivo, me irritaria com travessuras, me desorientaria, me desnortearia, me faria sair do lugar. Essa ilusão do vir de fora.

Essa ilusão de repouso de quem não sabe o que fazer. Imóvel, eu olho o azul. Não há para onde eu possa ir que não seja céu. Eu tenho asas que me sustentam. Enquanto eu permaneço aqui nessa inércia eu sinto o tempo, sentimento solitário, os dias correndo em mim como navalhas. Tudo me pede para sair do lugar.
Mas eu não sei voltar para casa…

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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