É extremamente tentador acreditar que somos capazes de dar pequenos pulinhos no passado e voltarmos ilesos à nossa vida atual. As histórias que vivemos lá atrás parecem uma gravura em aquarela, na qual as dores se dissolvem numa tinta perfeita que deixa transparecer apenas o que houve de bonito e doce. Como se fosse possível fazer desaparecer o que nos fez doer, arder, sangrar.
As experiências difíceis mais antigas vão se dissolvendo à medida que outras vêm compor nossas memórias, cenários e vivências. Temos essa mania romântica de permitir que o passado nos leve com ele, de volta a um tempo em que a pessoa que fomos ainda não foi apresentada à pessoa que somos agora.
Encontro às escuras entre a experiência que de quem já leu a história, até a última página e a impetuosidade de quem tem uma folha em branco nas mãos. Um universo de possibilidades de renascimento, refazimento, cura e transformação.
De repente, conjuramos em cores, calores e cheiros, um colo onde já estivemos inteiros e seguros. De repente, estamos encantados diante do mar, maravilhados com a sensação dos pezinhos minúsculos que afundam na areia, com o gosto do vento de sal sendo experimentado pela língua que toca os lábios num experimento maravilhoso de provar um sabor desconhecido. De repente, somos arrebatados pela sensação indescritível e indiscutivelmente profunda que só quem está irremediavelmente apaixonado é capaz de compreender. De repente caímos na armadilha de acreditar que o amor que acabou era perfeito; que todos os erros cometidos são imperdoáveis; que todas as perdas sofridas são irrecuperáveis.
E é sedutor demais permanecer ali, numa história idealizada que suscita no peito da gente uma saudade que é física, palpável e orgânica. Somos capazes de sentir saudades de coisas que vivemos, de coisas que sonhamos viver e de coisas sobre as quais ainda vivemos a tecer imagens vivas, na tentativa de torná-las reais. Ou, ficar ali, paralisado numa situação de fracasso que nos dá uma espécie de “atestado de permissão” para nunca mais nos arriscar outra vez.
Bastaria nunca mais abrir os olhos, para nos manter ilusoriamente seguros numa memória idealizada, onde fomos apenas felizes; ou protegidos de uma situação que foi absolutamente, completamente catastrófica. Nunca fomos apenas felizes! Nenhuma situação é 100% catastrófica. A alegria, a dor, a tristeza, a excitação são estados passageiros, frutos de uma conjunção de fatores que fizeram sentido apenas naquele momento.
Querer voltar no tempo para perpetuar um momento ou se proteger dos desafios atuais é entregar-se a uma ilusão perigosa; é abrir mão de viver coisas novas e descobrir novas pessoas, e conhecer novos lugares, e misturar a alma velha com a alma nova de um jeito forte e real que nos faça ter vontade de abrir os olhos para uma nova vida, de abrir os braços para outros encontros e o coração para experiências surpreendentes e improváveis.
Viver olhando para trás, rouba de nós a chance de estar inteiro nas experiências presentes e vivos para voar nas asas das histórias futuras. Olhemos para o que passou com a gratidão daqueles que sabem fazer do caminho trilhado, um aprendizado acolhido. Sejamos capazes de nos desgarrar de fiapos que já foram tecidos inteiros, de sombras que já foram projetos que não vingaram, de apegos que já foram amores reais. Que o passado descanse em paz. E que sejamos sábios o suficiente para não perturbar o seu descanso.