Psicologia e comportamento

Depressão: um enfrentamento insuportável com a verdade

A depressão é uma forma muito particular e avassaladora daquilo que corriqueiramente chamamos a dor de viver. Juntamente com a angústia e a dor propriamente dita, é uma constelação de afetos tão familiar que, como escreve Daniel Delouia, dificilmente conseguimos classificá-la entre os quadros clínicos da psicopatologia. À dor do tempo que corre arrastando consigo tudo o que o homem constrói, ao desamparo diante da voragem da vida que conduz à morte – que para o homem moderno representa o fim de tudo – a depressão contrapõe um outro tempo, já morto: um “tempo que não passa”, na expressão de J. Pontalis.

O psiquismo, acontecimento que acompanha toda a vida humana sem se localizar em nenhum lugar do corpo vivo, é o que se ergue contra um fundo vazio que poderíamos chamar, metaforicamente, de um núcleo de depressão. O núcleo de nada onde o sujeito tenta instalar, fantasmaticamente, o objeto perdido – objeto que, paradoxalmente, nunca existiu.

A rigor, a vida não faz sentido e nossa passagem por aqui não tem nenhuma importância. A rigor, o eu que nos sustenta é uma construção fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. A rigor, ninguém se importa tanto com nossas eventuais desgraças a ponto de conseguir nos salvar delas. Contra este pano de fundo de nonsense, solidão e desamparo, o psiquismo se constitui em um trabalho permanente de estabelecimento de laços – “destinos pulsionais”, como se diz em psicanálise – que sustentam o sujeito perante o outro e diante de si mesmo.

Freudianamente falando, a subjetividade é um canteiro de ilusões. Amamos: a vida, os outros, e sobretudo a nós mesmos. Estamos condenados a amar, pois com esta multiplicidade de laços libidinais tecemos uma rede de sentido para a existência. As diversas modalidades de ilusões amorosas, edipianas ou não, são responsáveis pela confiança imaginária que depositamos no destino, na importância que temos para os outros, no significado de nossos atos corriqueiros. Não precisamos pensar nisso o tempo todo; é preciso estar inconsciente de uma ilusão para que ela nos sustente.

A depressão é o rompimento desta rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca, ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda. Outras passam por ele em circunstâncias traumáticas e saem do outro lado. Mas há os que não conhecem outro modo de existir; são órfãos da proteção imaginária do “amor”, trapezistas que oscilam no ar sem nenhuma rede protetora embaixo deles. “A depressão é uma imperfeição do amor”, escreve Andrew Solomon, autor de “O demônio do meio-dia”, vasto tratado sobre a depressão publicado nos Estados Unidos e traduzido no Brasil no final de 2002. Faz sentido, se considerarmos o sentido mais amplo da palavra amor.

Durante cinco anos, Solomon dedicou-se a pesquisar a depressão: causas e efeitos, tratamentos, hipóteses bioquímicas, estatísticas. Recolheu histórias de vida de dezenas de pessoas que passaram por crises depressivas – “nunca escrevi sobre um assunto a respeito do qual tantos tivessem tanto a dizer”. A estas, acrescentou sua própria história – o trabalho no livro foi uma forma de reação ao longo período em que ele próprio passou por sérias crises depressivas. Um período em que, nas palavras do autor, “cada segundo de vida me feria”.

A julgar pelos números recolhidos por Solomon em relatórios da divisão de saúde mental da Organização Mundial de Saúde – o DSM-IV – esta ferida acomete a um número cada vez maior de pessoas no mundo, e particularmente nos Estados Unidos. 3% da população norte americana sofre de depressão crônica – cerca de 19 milhões de pessoas, das quais 2 milhões são crianças. A depressão é a principal causa de incapacitação em pessoas acima de cinco anos de idade. 15% das pessoas deprimidas cometerão suicídio. Os suicídios entre jovens e crianças de 10 a 14 anos aumentaram 120% entre 1980 e 1990. No ano de 1995, mais jovens norte-americanos morreram por suicídio do que de da soma de câncer, Aids, pneumonia, derrame, doenças congênitas e doenças cardíacas.

Esta forma de mal estar tende a aumentar, na proporção direta da oferta de tratamentos medicamentosos: há vinte anos, 1,5% da população dos Estados Unidos sofria de depressões que exigiam tratamento. Hoje este número subiu para 5%. Sincero adepto dos tratamentos farmacológicos, que segundo ele salvaram sua vida, Andrew Solomon acaba por se perguntar se a doença cresce com o desenvolvimento da medicina ou se a indústria farmacêutica produz as doenças para os remédios que desenvolve, do mesmo modo que outros ramos industriais criam mercados para seus produtos.

Insight sem inconsciente?

A contribuição das terapias medicamentosas no tratamento das doenças mentais é inegável, e o analista, assim como outros “terapeutas da fala” no dizer de Solomon, não pode dispensá-la. “O Prozac não deveria tornar o insight dispensável,”, diz Robert Klitzman, da Universidade de Colúmbia, citado pelo autor. “Deveria torná-lo possível”.

Mas qual o insight possível, capaz de produzir efeitos sobre a subjetividade, em uma cultura onde as práticas de linguagem se impõem fortemente de modo a apagar o sujeito do inconsciente? As histórias de pacientes depressivos enumeradas por Andrew Solomon centram-se ao redor da perspectiva única do vitimismo. As pessoas se deprimem porque não suportam o que foi feito a elas. Acidentes, perdas traumáticas, abandonos, violência, abuso sexual na infância; é de fora para dentro que a vida psíquica se impõe àqueles que sofrem de mal estar.

É óbvio que a rede de proteção do psiquismo pode ser rompida pelas irrupções traumáticas do real; mas as “desgraças da vida” recaem sempre sobre um sujeito, incidem sobre uma posição desejante e são rearticuladas pelas formações do inconsciente, que são formações da linguagem. Do ponto de vista do vitimismo, a cura da depressão consiste na eliminação de todo traço de “má notícia” que advenha do inconsciente. A psiquiatria e a indústria farmacêutica aliam-se a este ponto de vista. “Assistimos a um conluio curioso entre a descrição psiquiátrica e a própria queixa do deprimido”, escreve Delouia. “A ignorância a respeito do psíquico “une o fenômeno depressivo com a parafernália nosográfica da psiquiatria”.

O autor não deixa de ser crítico em relação a esta perspectiva. “Nós patologizamos o curável. Quando existir uma droga contra a violência, ela será encarada como uma doença”. Também é crítico em relação ao ideal de remoção química de toda a dor de existir. No entanto, a ingenuidade a respeito da realidade psíquica prevalece até mesmo em relação à sua própria crise depressiva. Filho de uma mulher ativa e absorvente, que mais tarde ele próprio pode perceber como depressiva, Andrew Solomon participou, junto com o pai e o irmão, do suicídio assistido da mãe, vítima de câncer no ovário aos 58 anos. Depois dessa morte, dramática e intensamente estetizada, a fantasia de suicídio ocorre aos outros membros da família. No ano seguinte, Solomon inicia uma análise com uma mulher que lhe lembra a mãe, e propõe a ela um pacto incondicional: não abandonarão o tratamento até o “fim”, sob nenhuma condição. Mas alguns anos depois,a analista anuncia ao dedicado analisando que vai deixar o trabalho. Aposentadoria por tempo de serviço…

No tempo de análise que lhe resta, Andrew Solomon não entende por que vai entrando em depressão cada vez mais grave, até que a própria analista concorda em que ele busque auxílio psiquiátrico. A análise “termina” pouco depois, e ele atravessa um ciclo de depressões gravíssimas. A inabilidade da analista de Solomon quanto ao manejo da transferência diante de um quadro de luto melancólico salta aos olhos do leitor familiarizado com a psicanálise. Não é sem razão que ele escreve, anos mais tarde, que a psicanálise seja “hábil para explicar, mas não eficiente para mudar” os quadros depressivos.

A julgar pelo relato de Solomon, seu tratamento psicanalítico foi baseado na reconstituição da vida infantil, em busca de um causalidade psíquica que, de fato, pode ter valor explicativo mas não produz nenhuma intervenção sobre o psiquismo vivo e ativo no sujeito adulto. Pierre Fédida, em seu livro sobre a depressão, adverte sobre os riscos de se buscar a evocação de um “acontecimento real que se supõe empiricamente traumático: a vivência infantil – essencialmente inatual na fala associativa – recebe assim uma positividade patogênica, na forma de uma atualidade passada”. O “infantil” que interessa à psicanálise não é o do passado, rememorado pelo eu, mas o que se manifesta ao vivo na transferência, nas demandas dirigidas ao analista. Como a analista de Solomon não se deu conta da relação entre a proposta de uma análise incondicional feita por ele, o amor pela mãe e o pacto de morte que o uniu a ela? Como não se deu conta da relação entre a crise depressiva de seu analisante e o anúncio burocrático de sua “aposentadoria”?

O livro de Solomon não oferece nenhuma contribuição decisiva para o conhecimento da depressão, mas lança uma luz importante sobre as relações entre a emergência epidêmica dessa forma de mal estar e os modos de subjetivação predominantes na cultura norte-americana. Em uma sociedade onde as formações discursivas apagam o sujeito do inconsciente, em que a felicidade e o sucesso são imperativos superegóicos, a depressão emerge – como a histeria na sociedade vitoriana – como sintoma do mal estar produzido e oculto pelos laços sociais. O vazio depressivo, que em muitas circunstâncias pode ser compensado pelo trabalho psíquico, é agravado em função do empobrecimento da subjetividade, característico das sociedades consumistas e altamente competitivas. A “vida sem sentido” de que se queixam os depressivos só pode ser compensada pela riqueza do trabalho subjetivo, ao preço de que o sujeito suporte, amparado simbolicamente pelo analista, seu mal estar. A eliminação farmacológica de todas as formas de mal estar produz também, paradoxalmente, o apagamento dos recursos de que dispomos para dar sentido à vida.

Artigo de Maria Rita Kelh

Imagem de capa: Reprodução

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