São definições cheia de poesia e sabedoria, apesar da pouca idade de seus autores. Ou talvez por isso mesmo. Desde A de adulto (“Pessoa que em toda coisa que fala, fala primeiro de si”, segundo Andrés Felipe Bedoya, de 8 anos), até V de violência (“A parte ruim da paz”, na definição de Sara Martínez, de 7 anos).
Eles têm uma lógica diferente, outra maneira de entender o mundo, outra maneira de habitar a realidade e de nos revelar muitas coisas que esquecemos
Javier Naranjo
O dicionário está no livro Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças, uma obra que surpreendeu ao se tornar o maior sucesso da Feira Internacional do Livro de Bogotá, no final do mês de abril. A surpresa aconteceu especialmente porque o livro foi publicado pela primeira vez na Colômbia em 1999 e reeditado no início desse ano.
“Isso me faz pensar que o livro continua revelando, continua falando sobre as pequenas coisas”, disse à BBC Mundo Javier Naranjo, que compilou as definições feitas por crianças colombianas. “Eles têm uma lógica diferente, outra maneira de entender o mundo, outra maneira de habitar a realidade e de nos revelar muitas coisas que esquecemos”, diz.
É assim que, no peculiar dicionário, a água é uma “transparência que se pode tomar”, um camponês “não tem casa, nem dinheiro. Somente seus filhos” e a Colômbia é “uma partida de futebol”.
‘Outra visão do mundo’
As definições – quase 500, para um total de 133 palavras diferentes – foram compiladas durante um período “entre oito e dez anos”, enquanto Naranjo trabalhava como professor em diversas escolas rurais do Estado de Antioquía, no leste do país.
“Na criação literária fazíamos jogos de palavras, inventávamos histórias. E a gênese do livro é um dos exercícios que fazíamos”, conta ele, que agora é diretor da biblioteca e centro comunitário rural Laboratório do Espírito.
Ele diz que teve a ideia de pedir aos alunos uma definição do que era uma criança, em uma comemoração do dia das crianças. “Me lembro de uma definição que era: ‘uma criança é um amigo que tem o cabelo curtinho, não toma rum e vai dormir mais cedo’. Eu adorei, me pareceu perfeita.”
“As crianças escolheram algumas palavras e eu também: palavras que me interessavam, sobre as quais eu me perguntava. Mas não fugi de nenhum”, afirma Naranjo.
No dicionário aparecem temas do cotidiano da Colômbia, como guerra e “desplazado”, pessoa que se desloca pelo país, geralmente fugindo de conflitos. Um dos alunos definiu a palavra criança como “um prejudicado pela violência”.
Aprender a escutar
Para a publicação, Naranjo corrigiu a pontuação e a ortografia das definições escolhidas, mas afirma não ter tirado nenhuma das palavras por “questões ideológicas”.
Nós adultos somos condescendentes quando falamos com as crianças e deve ser o contrário. Mais que nos abaixarmos temos que ficar na altura deles. Estar à altura deles é nos inclinarmos para olhar as crianças nos olhos e falar com elas cara a cara. Escutar suas dúvidas, seus medos e seus desejos
Javier Naranjo
Por isso, o livro mantém a voz das crianças, com suas formas de explicar as coisas e construções gramaticais particulares. Bianca Yuli Henao, 10 anos, define tranquilidade como “por exemplo quando seu pai diz que vai te bater e depois diz que não vai”.
O ex-professor diz que o respeito à voz das crianças também é parte do sucesso do livro, que foi reeditado em 2005 e 2009 e inspirou obras semelhantes no México e na Venezuela.
As vendas do livro ajudaram a financiar as atividades da biblioteca atualmente dirigida por Naranjo, que continua convidando as crianças a deixar a imaginação voar com outras dinâmicas.
“Nós adultos somos condescendentes quando falamos com as crianças e deve ser o contrário. Mais que nos abaixarmos temos que ficar na altura deles. Estar à altura deles é nos inclinarmos para olhar as crianças nos olhos e falar com elas cara a cara. Escutar suas dúvidas, seus medos e seus desejos”, diz.
Algumas definições do dicionário
• Adulto: Pessoa que em toda coisa que fala, fala primeiro dela mesma (Andrés Felipe Bedoya, 8 anos)
• Ancião: É um homem que fica sentado o dia todo (Maryluz Arbeláez, 9 anos);
• Água: Transparência que se pode tomar (Tatiana Ramírez, 7 anos);
• Branco: O branco é uma cor que não pinta (Jonathan Ramírez, 11 anos);
• Camponês: um camponês não tem casa, nem dinheiro. Somente seus filhos (Luis Alberto Ortiz, 8 anos);
• Céu: De onde sai o dia (Duván Arnulfo Arango, 8 anos);
• Colômbia: É uma partida de futebol (Diego Giraldo, 8 anos);
• Dinheiro: Coisa interesse para os outros com a qual se faz amigos e, sem ela, se faz inimigos (Ana María Noreña, 12 anos);
• Deus: É o amor com cabelo grande e poderes (Ana Milena Hurtado, 5 anos);
• Escuridão: É como o frescor da noite (Ana Cristina Henao, 8 anos);
• Guerra: Gente que se mata por um pedaço de terra ou de paz (Juan Carlos Mejía, 11 anos);
• Inveja: Atirar pedras nos amigos (Alejandro Tobón, 7 anos);
• Igreja: Onde a pessoa vai perdoar Deus (Natalia Bueno, 7 anos);
• Lua: É o que nos dá a noite (Leidy Johanna García, 8 anos);
• Mãe: Mãe entende e depois vai dormir (Juan Alzate, 6 anos);
• Paz: Quando a pessoa se perdoa (Juan Camilo Hurtado, 8 anos);
• Sexo: É uma pessoa que se beija em cima da outra (Luisa Pates, 8 anos);
• Solidão: Tristeza que dá na pessoa às vezes (Iván Darío López, 10 anos);
• Tempo: Coisa que passa para lembrar (Jorge Armando, 8 anos);
• Universo: Casa das estrelas (Carlos Gómez, 12 anos);
• Violência: Parte ruim da paz (Sara Martínez, 7 anos);
Fonte: livro Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças, de Javier Naranjo
As informações são da BBC
Fonte da matéria: Repórter Alagoas
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