Por David Chagas
A correria do dia a dia quase me impede de vê-la no Roda Viva, ali, rodopiando entre perguntadores, alguns demonstrando conhecer sua obra, outros, nem tanto. Aqui, firme, diante do que ouvia e via, me portei como se tivesse medo de que alguém pudesse ferir sua alma. Na poltrona, como “concha blindada a salvo de predadores” não me expus, embora desejasse. O silêncio, não para defendê-la, para defender-me.
Adélia ousa ao pensar, alegra-se com isso, pensa largo, pensa grande e, por vezes, deixa escapar, na suavidade do olhar e no esboço do sorriso, irônica ingenuidade. Mas o corpo não me parece bastante para proteger sua alma e as palavras, estas, de forma perceptível, “se agrupam de súbito como para uma procissão ou dança sem pedir-lhe ordem ou conselho”.
No rodopio da cadeira, lá estava, aparentemente serena, como sabe ser, jeito mineiro, respondendo a tudo com sábia simplicidade. O sotaque característico dá tom à nota. E eu, sem ter sido convidado para tanto, queria estar lá para ouvir de perto, anjo protetor em abraço demorado.
Por vezes, numa e noutra pergunta que faziam, aqui, “como um bicho respirando perigo” rezava, não para auxiliar, mas para salvá-la da fadiga. Confio na sua palavra que jamais me confunde. E me enraiveço quando não entendem. Adélia não sente raiva ou finge não sentir. É cândida e suave. Sempre como a primeira estrela, a que surge na tarde e permanece, com brilho, força, iluminada e iluminando. Adélia em tudo. Prado bom. A cada palavra sua, verdejante, prado bom, metáfora do bem, do belo, figueira com frutos, vinha em flor exalando perfumes. Adélia, plácida colina mineira ainda sob o frescor da relva, por onde caminha o Senhor a fazer maravilhas. Exatamente assim desde que veio ao mundo.
Pensava comigo: Deus, a quem trata com humano gesto, solidário e amoroso, por certo se aproxima. A todo instante. E Adélia, ali, parecendo acanhada, resplandece em sua aura a cada resposta porque sabe ser a escolhida do espírito de Amor.
Simples, como se, sentada à mesa do almoço, conversasse com o Zé e a filharada, mãe de filhos que é, girava a cadeira à procura do interlocutor sem revelar em nenhum momento sua excelsa vida. Consciente de sua individualidade, singular, única, Adélia luzia como poucos no rodopiar da cadeira ora deixando escorrer os dedos sobre os cabelos, ora juntando as mãos sobre o rosto . Via, ouvia, observava tudo. E falava, sem atropelo, mineiramente, esticando as vogais, amortecendo os erres.
Nem sei mesmo explicar quem eu era e o que sentia. A emoção me ocupava e roubava de mim cada um dos sentidos, para estar só, dominando-me todo para ouvir Adélia. Sentia, ao respirar, que também se ocupava de mim o Espírito que vem, encarna no silêncio e, em silêncio, permite aceitar, mesmo sem entender, o mistério. Este mesmo que sua obra, cristificada, revela.
À frente de seu tempo, a vanguarda se apresenta na sua poesia. Alimentada pelo dom , Adélia apresenta sua visão de mundo com clareza absoluta. “Como gosto disto, meu Deus!” Sem ofender, sem protestar, sem alfinetar quem quer que seja, fala dos homens como fala de Deus. Assume sua decepção com a política local, com o acinzentamento em que se encontra o país incluindo Divinópolis, seu pequeno mundo, alcançando no olhar e na voz os milhões de quilômetros que nos circundam e desenham a harpa onde vivemos, hoje se não muda, desafinada.
Se lhe perguntam de alguém a quem sorrir, hesitante, temerosa de não ser compreendida, sugere Juscelino. Está certa. Juscelino só não fez mais porque não permitiram. Ao menos honrou o espírito democrático e ofereceu Brasília, cara, caríssima, mas real, concreta, capaz mesmo de abrir o Brasil para o futuro.
Hoje, Adélia em gritos de Miserere! roga por misericórdia e pede ajuda. Sigo a sua voz e clamo com ela. E você, leitor amigo, junte-se a nós. Não poderiam ter feito conosco o que fizeram. Abba! Abba! “Aceita o que me enoja/gosma que me ocultou teu rosto”. E ouve o meu, o seu, o nosso clamor. Miserere!
No correr do programa Adélia pergunta e, perguntando, responde a seus interlocutores e aos telespectadores, de forma veemente, sem perder a ternura, jamais. Miserere! Sabe tão bem de Deus que não hesita, não titubeia. Diz que não entende, sabendo entender.
“Abba! Abba!” só nela é possível ver, com clareza, a inocência que infundes fazendo plena a vida. A minha, com ela, a nossa, com a dela, e a dela, por ela.
David Chagas é jornalista e professor
E-mail: davidchagas@terra.com.br
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