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Documentário mostra famílias que escolheram não matricular crianças na escola

Na época em que o primeiro filho nasceu, a atriz e cineasta francesa Clara Bellar dividia seu tempo entre o Rio de Janeiro, Paris e Los Angeles. Em vez de decidir por um desses locais para poder matricular o menino na escola, ela e o marido preferiram entender como crianças poderiam aprender de maneira livre e conviveram durante dois anos com famílias que optaram pela não escolarização. O resultado foi uma jornada que é mostrada no documentário “Ser e vir a ser – Vivendo e aprendendo”.

O filme é uma busca pelo “desejo inato de aprender”, conforme define a sinopse de divulgação. Ele explora o conceito de desescolarização (unschooling, na expressão em inglês) e apresenta famílias da Alemanha, Estados Unidos, França e Reino Unido que vivem ou vivenciaram essa experiência, além de ouvir educadores e especialistas no tema. Também é possível ouvir histórias e conhecer jovens que tiveram uma educação livre, porém, mais tarde optaram por ingressar no ensino formal em renomadas universidades. Segundo Clara, que é mãe de uma menina de um ano e um menino de 6, a intenção não é julgar a escola ou tentar apontar um único caminho, mas mostrar que também existem outras possibilidades para aprender. “O importante é informar para que as pessoas possam escolher, cada um para a sua família”, defende.

Confira a seguir alguns trechos da conversa com a cineasta.

Quais foram os primeiros questionamentos que surgiram quando você começou a pesquisar sobre desescolarização?

Quando ouvimos falar pela primeira vez sobre não escolarizar – e não apenas o fato de não ir para uma escola e fazer a escola dentro casa –, não entendíamos como era possível aprender sem a necessidade das coisas serem ensinadas. Estávamos muito formatados e não conseguíamos imaginar fora desse paradigma. Conhecendo as crianças que aprendem de maneira livre, descobrimos que elas aprendem vivendo. Como falou Alan Thomas, professor da Universidade de Londres, durante o filme, tudo o que você precisa para funcionar na sociedade, você vai aprender vivendo. Na verdade, se você vive em uma cultura com livros e coisas escritas nas paredes, no metrô, vai acabar lendo, escrevendo e aprendendo matemática básica – como fazer uma receita para mais pessoas ou dar trocos. Esse tipo de coisa, aprendemos fazendo.

Um dos questionamentos era se os pais precisavam saber de tudo. E na verdade, não. Eu pensava que seria preciso buscar tutores e professores particulares, mas vi que não era exatamente assim. Muito em breve se acham pessoas. Uma aposentada que mora no mesmo prédio pode ficar feliz em partilhar a paixão dela com um jovem. Eles não aprendem a fazer amizade por faixa de idade. Também existe muita troca com outros pais.

De que forma os pais devem estar preparados para isso?

O que os pais [ouvidos durante a produção do documentário] me falaram é que para as crianças aprenderem é preciso viver. O difícil é os pais fazerem um trabalho em si para não criarem muitas expectativas, não colocarem pressão e terem confiança – nas crianças e em si –, o que é muito difícil na vida. Eles reaprendem a ter autoconfiança quando começam a confiar mais nos filhos.

Nas famílias que aparecem no documentário é possível notar uma proximidade com a natureza. Você acredita que a desescolarização tem relação com um estilo de vida próprio?

É muito raro que a desescolarização seja apenas uma opção por uma maneira de instruir os filhos. A vida das pessoas apresenta uma volta para a natureza e a liberdade. Mas muitas pessoas no filme moram na cidade, só que as entrevistas são na natureza porque as crianças passam muito tempo fora. Elas não são presas entre quatro paredes. Quando eu ia conhecer uma família, muitas vezes ela estava fazendo uma atividade fora. Eu até descobri parques públicos em Paris que não conhecia. Foi interessante. Eles têm mais tempo na natureza, é verdade, mas isso não quer dizer que necessariamente moram fora da cidade.

A desescolarização não é possível para qualquer pessoa?

Eu prefiro falar que não é para qualquer um por causa do jeito que a sociedade está organizada. Mas aí existe um problema de sociedade que não tem nada a ver com uma questão de aprendizagem. Se todo mundo seria capaz em uma sociedade natural? Sim. É assim que os mais tradicionais funcionavam. É assim que as pessoas sempre aprenderam: vivendo, olhando, imitando e indo atrás dos seus interesses. Mas na sociedade do jeito em que está, claro que existem pessoas que podem ter alguma situação que não permitiria isso.

Mas eu vejo pessoas que decidiram sair da cidade e ganhar menos no trabalho. Conheci muitas pessoas que viram o filme no cinema na França e me contaram exemplos muito extremos. Uma mãe solteira, com dois filhos adolescentes, contou que eles viveram com 500 euros por mês durante anos. Esse é um exemplo extremo, mas todo mundo poderia. As pessoas reinventam a vida que realmente convém para elas.

As crianças, jovens e adultos não escolarizados que aparecem no documentário apresentam algumas características em comum, como o interesse pelas artes e a criatividade. A educação livre estimula o desenvolvimento dessas habilidades?

Como é falado no filme, toda criança tem essas características de criatividade e imaginação. Você começa uma história e eles inventam o fim. Isso é natural. Eu não acho que a desescolarização desenvolve mais. Mas eu acho que, na maioria das escolas, o fato de os alunos ficarem muitas horas sentados e fazendo o que os outros falam tira uma parte da criatividade. São outras necessidades. São as necessidades da revolução industrial, dessa coisa de escola para todos. Aí você não tem mais muito tempo de imaginação.

As crianças não escolarizadas, pelo menos a partir de observações no documentário, parecem não fazer muita separação entre o tempo do aprendizado e tempo da diversão. Como isso muda a forma de encarar o mundo e encontrar prazer nas coisas que se faz?

A gente não nasce com essa separação. Ela começa na idade em que a gente entra na escola. Minha filha com seis meses parecia que queria andar, e a gente acreditou. Ela estava tão decidida, mas demorou seis meses. Durante esse tempo ela ficou caindo e ficou frustrada, mas era lúdico. Não havia separação: “Agora vou trabalhar e fazer um passo e meio, depois eu vou brincar.” Não. Aprender é brincar; e brincar, o meu trabalho.

As duas coisas mais difíceis que as pessoas aprendem na vida inteira, que são andar e falar, ninguém vai ensinar. “Vamos trabalhar e vamos fazer uma hora de andar. Uma hora de falar português.” Isso não existe. Mas aí chega uma idade, como o Alan Thomas fala, e todo mundo tem que mudar a maneira de aprender. Aí falam “olha, você vai fazer uma coisa que não é sua, mas você vai ter a recompensa e poder brincar depois.” Aí começa a separar. É tão triste.

Alguns especialistas criticam o modelo pela questão da socialização, mas no filme percebemos que as crianças também convivem com outras crianças, jovens e adultos. Como essa mistura de idades diferentes pode enriquecer o aprendizado?

Eu acho que, mais uma vez, entra essa coisa de separação, agora por idades. Como não acontece isso, eu acho que socialização e o isolamento é o primeiro preconceito que cai porque você percebe que é ao contrário. Não é a socialização de estar com 20 crianças que nasceram no mesmo ano, no mesmo bairro (se for o caso de uma escola pública) e da mesma categoria social (se for uma escola privada) onde os pais têm rendas similares. Aí você não tem uma quantia representativa de crianças do seu país.

Um dos pontos que chama bastante atenção no filme é a fala de adultos que tiveram uma educação livre durante a infância e adolescência e, mais tarde, optaram por ingressar no ensino formal em grandes universidades. A desescolarização é um caminho flexível que possibilita entrar e sair dele?

Totalmente flexível. Eu conheço famílias em que um filho vai [para escola] e outro não. Não é uma coisa que você precisa decidir para 12 anos. É um dia de cada vez e o que funciona melhor para a pessoa. Dentro de cada família vai ser diferente para cada criança. Cada criança tem necessidades diferentes.

E como avaliar o aprendizado?

Eu realmente não acho que deve ser avaliado. Tem um fato bem interessante no filme, na cozinha da Naomi [entrevistada no documentário], quando se fala “mas como você sabe que está expondo o suficiente?”. Você vê se a criança está bem. Uma criança que não estaria aprendendo, não estaria bem. Você, como pai, convive com ela e vê se está se desenvolvendo e se está entusiasmada quando acorda de manhã… se está indo à luta. Se [a criança] está, quer dizer que ela está aprendendo o que quer aprender e o que deve aprender. Se você vê que a criança está apagada, aí tem um problema. Se eu tivesse que resumir, unschooling é confiar e escutar uns aos outros. Você conversaria e acharia uma solução. Você veria qual necessidade fundamental da criança não está sendo satisfeita. Você acharia outras maneiras. Mas agora avaliar, não. Quem decide o que vai ser uma matéria?

Eu acho que não só não é necessário, como também não é saudável. Aí que começa perder a autoconfiança. Começa a se comparar com os outros. É uma condicionalidade de dizer que você não é suficiente. Eu adoro uma frase do Einstein que aparece no filme: “Todo mundo é um gênio. Mas, se você julgar um peixe por sua capacidade de subir em uma árvore, ele vai passa a vida toda acreditando que é estúpido.”

Entrevista originalmente publicada no site Porvir, que promove a produção, difusão e troca de conteúdos sobre inovações educacionais. Via Opera Mundi.

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