Limão, terra, bola. Se não me engano, eram essas as palavras que minha avó foi convidada a guardar na memória durante uma de suas tantas consultas geriátricas. Já faz alguns meses que seus lapsos preocupam a família. Meu mais recente espanto foi quando me telefonou apenas para confirmar o restaurante do almoço de domingo, cancelado com ênfase na véspera. Quis lembrá-la de nossa conversa, dos detalhes que atenuavam aquele domingo carente de filho ou de neta, mas temia descobrir que nada daquilo se mantivera com ela. Preferi o silêncio.
Está acontecendo de modo bastante discreto, é verdade, mas minha avó aos poucos se ausenta desse mundo que compartilhamos. É um misto de poesia e tristeza observar aquilo que fica, que por alguma razão é escolhido para permanecer, delineando um fio de vínculo sutil entre ela e as pessoas. As mangas, por exemplo. Há alguns meses, ganhou centralidade na conversa do café da tarde o meu gosto por mangas. Desde então, e apesar de mim ou da verdade, receberam o rótulo de fruta preferida da neta e encontram-se, invariavelmente, entre suas compras da semana. Às vezes, quando já estou na porta do elevador, ela arregala os olhos e acena para que eu espere. É um saco plástico. Desenrolo o embrulho que fez na pressa, e lá está mais uma manga.
Lembranças remotas ora se solidificam, ora se reinventam. Ficamos sem saber se virão com certo frescor ou maior intensidade, se é que virão. Mencionamos alguns primos já idos e ela sorri no volume alto. A dor do filho perdido há décadas, no entanto, se mostra a cada dia mais insuportável. Nesse processo, descubro também a versão pontiaguda de minha avó. Disposta a deslindar antigos emaranhados de dor, exercita uma mordacidade que antes não cabia em seu repertório por demais vovozinha. “Lá quando tu era guri e decidiu morar nos Estados Unidos, foi por que teu irmão morreu? Eu lembro que tinha dois filhos e de repente um dia não tinha mais nenhum.” Essa foi para meu pai, numa terça-feira qualquer, acompanhada de biscoitos doces.
Imagino aquele domingo sem almoço, após uma ligação embaraçosa, como um dia difícil para minha avó. Não porque sempre haja almoço de domingo. Pelo contrário, não tem havido almoço algum. É que domingo sempre foi dia de ver a Dona Jura, que é como costumamos chamá-la, em tom jocoso. Íamos, os quatro lá de casa (e aí termina a família), passar o final do dia com ela e meu avô. Com frequência, a encontrávamos deitada no quarto sem uma única luz a entrar. Parecia que aos domingos ela se lembrava de sofrer, de fazer seu eterno luto. Na sala, assistíamos todos ao programa do Faustão e um pouco do Fantástico. Sem o volume, escolha do meu avô, como todas as outras na casa. Eu esperava os intervalos para ir até a cozinha abrir as portas daquele que denominei armário das guloseimas. Lá estavam todos os doces e salgadinhos preferidos meus e do meu irmão. Não esquecia nenhum, um domingo sequer.
Faz uns dias, empreendemos uma nova visita dominical. Meu pai, separado. Meu irmão, em passagem breve pela cidade. O Faustão, graças a Deus, continua em silêncio. No entanto, disputa espaço com algumas missas transmitidas ao vivo. Na dúvida, migramos para a cozinha. As guloseimas dos netos, encabeçadas, é claro, pelas mangas, são hoje mais saudáveis e estão na geladeira ou sobre a mesa. Durante o café, Dona Jura, que hoje se esquece de sofrer deitada, não lembra o lugar onde meu irmão mora, mas sim que seu tempo não está entre os mais longos. Reivindica bisnetos.
No desejo um tanto controverso de acelerar e estancar o tempo daquele café, que não deve se reproduzir, não naquelas condições, abro o jornal para completar as palavras cruzadas em família. Decerto meu irmão, meu pai e eu mesma esqueceremos de vasculhar discretamente nossos telefones. Dona Jura comenta que naquele jornal os aniversariantes são homenageados em uma página com suas fotos. Está segura de que no próximo trinta e um de maio, dia de seus oitenta e três anos, terá sua foto publicada nessa página. Paramos qualquer atividade, temos um assunto comum. Perguntada sobre como isso aconteceria na prática, não hesita: o entregador da noite virá pedir seu retrato. Mas olha, vou dizer, me traz de volta amanhã mesmo!
A escolha refletida de um retrato que mereça ir para o jornal ainda deve ocupar suas manhãs e tardes até os fins de maio, apesar de nossas risadas e explicações a respeito da improvável solicitação do entregador. Dona Jura lembrou-nos, no anacronismo de sua fantasia, que ainda gosta de ser lembrada. A nós, que tínhamos mesmo esquecido, talvez por excesso de zelo, de reparar naquela senhora, naquilo que ainda lhe é vivaz, que a mantém Dona Jura. Nosso lapso era tanto mais grave que o de minha avó, que ao final da consulta não guardava desimportâncias como terra, bola, limão, mas correu a comprar mangas frescas antes que chegassem as cinco horas.
A crônica acima é de autoria de Lolita Campani Beretta, a neta tão carinhosamente presenteada com mangas.
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