Doutor Estranho é um filme de norte americano, baseado no personagem homônimo da Marvel Comics. Stephen Strange, é um bem-sucedido neurocirurgião, com um ego inflado. O filme retrata um homem, que vive para a profissão e para o umbigo. Sua arrogância o leva a desprezar as relações, inclusive com sua colega de trabalho e ex – namorada, Christine.

A forma como Strange lida com o mundo, de forma prática e racional, nos mostra que parece se tratar de alguém com função principal sensação e auxiliar pensamento. Seu gosto apurado, sua relação apenas com o que é tangível e sua predileção pelo intelecto em detrimento do sentimento e das relações, mostram esses aspectos. O filme então ilustra o que ocorre, quando uma função principal se desgasta e é necessário desenvolver as demais, principalmente a inferior.

De um ponto de vista coletivo, podemos observar muito daquilo que é admirado no mundo ocidental: o homem com poder e prestígio externos, a realização profissional, a eficiência, o ter e os processos racionais e cognitivos. O irracional, a sensibilidade, o ser, a intuição e a alma, são desprezados pela cultura ocidental. O filme então, mostra uma crítica e uma mudança de paradigma.

Strange perde o uso de suas mãos em um acidente de carro e isso me faz lembrar do conto de fadas A Donzela sem mãos, quando a mocinha tem suas mãos cortadas pelo pai que fez um pacto com o diabo.

De certa forma, Strange também vende sua alma ao diabo e faz um pacto infeliz com os valores externos em prol de sua alma. Ao perder o uso das mãos, ele perde sua capacidade de fazer algo no mundo externo. Ele perde sua capacidade de atuação e seus dons criativos. Ele precisou perder sua capacidade extrovertida de atuar para olhar de forma introvertida para aquilo que falta nele.

Muitas figuras mitológicas de deuses e heróis apresentam algum tipo de aleijamento. O aleijado na mitologia, costuma ser alguém criativo – vide Hefesto, deus da forja –e também simboliza o curador ferido – vide Quirón.

No processo de individuação, o confronto com o inconsciente, com os complexos materno e paterno sempre traz uma lesão ao frágil ego. O herói, nos contos de fadas e mitos, também apresenta essa ferida como uma marca, não só como ponto fraco. Édipo tinha os pés inchados, por exemplo, como forma de apontar para um destino especial do herói.

Em termos psicológicos é como se o trauma original impulsionasse o herói para a individuação, carregando não somente seus complexos, mas também sua ancestralidade, ou seja, os problemas e questões não resolvidos por eles.

Strange é o herói, aquele que restabelece a situação saudável da consciência coletiva. Ele tem uma marca, um destino especial. Sobre o fato da lesão ter sido na mão do Dr Estranho. As mãos se ligam ao agarrar, segurar. A criança quando começa a se relacionar com o mundo, faz isso tocando, pegando os objetos. Isso significa que ele perdeu a capacidade de apreender as questões e também a capacidade de fantasiar criativamente e a vitalidade da infância.

Strange precisa ser preciso, executivo e por isso reprimiu a capacidade criativa, a de ir além dos sentidos. Em termos coletivos vemos muito em nossa sociedade que valoriza a eficiência – as mãos –mas que ironicamente, acaba sendo ferida justamente nelas. E a mão dele nunca mais voltará ao normal, mas ao mesmo tempo a ferida na mão é que é a sua redenção, seu verdadeiro dom. O dom é a ferida!

Cena do filme: Doutor Estranho, Disney/ Buena Vista

O então médico ferido segue para o Kamar-Taj, no Nepal, local onde ouviu falar de um ex paraplégico. Ele então conhece a Anciã, que lhe mostra o plano astral e outras dimensões. As outras dimensões fazem um paralelo ao plano do inconsciente, diferente do plano cartesiano da consciência. Lá não há tempo e espaço e lá existe o mundo das possibilidades, onde tudo é possível e irracional.

Strange começa o seu aprendizado com a Anciã e com Mordo – que se torna seu amigo – e aprende também (devido a sua inteligência) dos livros antigos da biblioteca. Strange é tomado e começa a aprender vários feitiços. Ele então se torna um mago. E aqui vemos então, além do arquétipo do herói, o do mago. Ou seja, aquele que é capaz de alterar a sua realidade. O Mago é aquele que está em sintonia com o Cosmos e com o Self.

Projetamos esse arquétipo no xamã, ou seja, aquele que transita entre os dois mundos e traz a cura e as repostas para o sofrimento.
O Mago é então aquele que sabe transitar, que conhece a influência mutua entre o mundo exterior e o interior. Conhece e compreende a sincronicidade. O Mago em nós permite que tenhamos a experiência do todo, e assim passamos a experimentar na prática que o que está em nós contém o que está fora de nós. O Mago então se liga profundamente à função intuição. Sonhos, fantasias, momentos de percepção intuitiva, são realidades para ele.

Strange representa esse arquétipo, mas também alguém que agora sabe alterar sua realidade e aceitou sua intuição. A mudança de personalidade se mostra na dor e na luta do herói com sua função inferior.

Após o seu desenvolvimento como mago, Strange irá então se deparar com um elemento bem importante na jornada do herói, a sombra, através do feiticeiro Kaecilius. Ele e seus seguidores roubaram o ritual de um livro proibido pela Anciã. Kaecilius e seus seguidores usam as páginas roubadas para começar a convocar o poderoso Dormammu, guardiã oda Dimensão Negra, onde o tempo não existe e todos podem viver para sempre.

A forma negativa do Mago, busca seu próprio proveito. Usamos o Mago negro, quando rotulamos algo ou alguém e assim fazendo com que a realidade assuma aquele nome. Ao dizer a alguém: “Você é esquizofrênico!”, definimos a identidade de alguém em relação a doença, e assim definimos dessa forma toda a sua identidade. Somos gordos, brancos, negros, altos ou baixos, e não seres humanos em uma amplitude de camadas que ainda podem ser desconhecidas. Os rótulos estão cada vez mais presentes na nossa cultura, temos um verdadeiro desespero quando não nos encaixamos em um estereótipo ou não conseguimos nomear algo, ou alguém.

O Mago saudável sabe navegar no desconhecido, sabe que em relação a alma existem diversas facetas e uma amplitude inesgotáveis. Sabemos também que não podemos viver para sempre. Os magos atuais, buscam a juventude eterna, e esse é o lado negativo do arquétipo. O Mago positivo, conhece e respeita os ciclos da natureza, ele sabe que a morte é necessária e que a morte é a pura transformação.

Ao confrontar sua sombra Strange entra em um dilema, ele terá que decidir entre recuperar o uso de suas mãos ou defender o mundo. Ele agora é o curador ferido, o homem criativo, o mago e o transformador. Seu dom está na dor e na impotência que o faz lembrar que o poder não é dele, mas do Self.

Muitas vezes arrogamos de possuir nossas ideias, no entanto, a ideia não é nossa, mas de uma instância maior que o ego. Podemos entrar na hubrys, ou seja, na inflação psíquica, assim como Kaecilius.

A impotência em sua mão ainda o faz lembrar que é humano! Ele também entra em conflito com a Anciã, que drena energia da Dimensão Negra para ter mais poder e longevidade. Ao confrontar Kaecilius, ela cai de um prédio de 20 metros e morre. Mas antes se comunica com Strange no plano astral dizendo que uma hora ele vai ter que quebrar certas regras como ela.

A Anciã tem uma caracterização bastante andrógina, apontando para uma representação simbólica do Self. Uma representação de alguém individuado, que integrou masculino e feminino. Ela também possui a integração com seu lado sombrio, e isso é uma surpresa para o herói. Temos a ideia de que o Self, e a imagem da divindade como masculina e iluminada, mas há na totalidade todos os aspectos.
Além disso, há o fato da Anciã morrer. Como que um símbolo do Self morre?

O Self, é o centro do sistema autorregulado da psique, do qual depende o bem-estar do indivíduo. Isso se mostra nos sistemas religiosos vigentes e nos sistemas políticos, reis e governantes também carregam essa projeção.

A história comparada das religiões mostra a tendência dos rituais ou dogmas religiosos a tornarem-se superados depois de um tempo, a perderem seu impacto emotivo original, tornando-se fórmulas mortas. Isso é verdadeiro não somente para as doutrinas religiosas e sistemas políticos, mas para quase tudo na vida, pois quando algo se torna consciente por muito tempo, é como o vinho que se esvai da garrafa; torna-se um mundo morto (Von Franz, 2005). Por isso esse símbolo precisa de renovação constante, pois se não a vida se petrifica.

O símbolo do SELF tem necessidade de renovação constante, de compreensão e contato, pois, de outro modo, corre o perigo de se tornar uma fórmula morta — um sistema e uma doutrina esvaziados de seu significado e tornar-se uma fórmula puramente exterior.

Por isso, a Anciã, como esse símbolo, morre. Ela então deixa o espaço vazio para que um novo símbolo se manifeste.

Strange usa o Olho de Agamotto para voltar no tempo, enfrentar a Dimensão Negra e impedir a destruição do mundo. Ele usa de estratégia para enfrentar o ser da outra dimensão. Ao assimilar o Mago e sua sombra, ele consegue entrar nesse outro mundo e “negociar” e com muita paciência.

Em termos psicológicos representa por exemplo, a imaginação ativa. Onde o ego entra em uma relação e uma dialética com o inconsciente. No filme Strange, negocia com aspectos sombrios do seu inconsciente para que fiquem menos destrutivos. Algo que só um ato de heroísmo e abnegação.

Strange então aceita seu papel de herói, mesmo perdendo os movimentos da mão. Além disso, ele precisa aceitar o fato de que alterar a realidade e fazer magia traz muitas responsabilidades e consequências que um ego maduro precisa aceitar.

Longe de finalizar o assunto do filme, que possui muitos aspectos e facetas, a jornada de Strange, mostra a transformação de alguém, que vivia para a realização externa, a busca de status e reconhecimento, arrogante e sem vínculos amorosos, em alguém que foi humilhado por seu inconsciente e teve de se voltar para ele, em um encontro com sua função inferior, transformando sua personalidade.

Uma jornada de individuação, que retrata as dificuldades no caminho, muitas vezes dolorosas, mas que serve de espelho para que nossa jornada rumo a busca de nós mesmos tenha sentido e para que nossos conflitos e sofrimentos possam ser compreendidos e transformados.

Mais do que nunca precisamos do contato com nosso Mago interior, ou seja, aquele que fará a ponte entre nossa consciência e o mundo interior.

Hellen Reis Mourão

Analista Junguiana, especialista em contos de fadas e Mitologia, escritora, professora e palestrante.

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