Por Clara Dawn
Enquanto o vento pincelava nuvens, transfigurando-as em jocosos animaizinhos, Deus cumpria o Regulamento da Casa e deixava apenas doze girassóis no jardim. Colhê-los-ia Van Gogh tempos depois. Tempos depois ainda seriam doze. Doze girassóis sedentos num vaso tosco e cheio de vincos. Impressionam-me, não os girassóis. Os vincos… Impressionam-me.
Impressiona-me, também, a curta e interminável vida de Van Gogh. Impressiona-me a tela pintada com tons de amarelo e marrom insinuando um mundo belo, rico e cheio de esperança. Mas, na época que pintou “Girassóis“, o mundo interior de Van Gogh fugia de seu controle… É o que sugere a superfície do quadro? O tom agitado e a textura desarmônica revelariam, assim, o estado de espírito do artista? Os vincos no vaso eram prenúncios de que a vida de Van Gogh estava prestes a um trágico fim?
Doze girassóis num vaso – doze meses – uma primavera a menos… E os gonzos da existência se oxidam, ainda que de barro sejam. Por Cristo, por que os girassóis estão num vaso? Não teria Deus os deixado no jardim?
Há de se compreender essa metáfora. Ora, os girassóis representam a vida, os dias, os meses do ano – um ano inteiro – uma vida inteira. Inteira? Inteira, não estaria num vaso repleto de vincos… Inteira seria a vida dos girassóis se eles estivessem no jardim: juntos olhando para a mesma direção, buscando ideais de um bem comum – conduzidos vitalmente à luz.
Ah! Fascina-me o fato de que na ausência da luz os girassóis se viram uns para os outros como se buscassem absorver o que têm de melhor nos outros, como se quisessem dar aos outros também, o melhor de si…
Pobre Van Gogh – uma vida, não inteira, dentro de um vaso! Chorei por Van Gogh, chorei por mim, chorei por tantos. Porque de repente aprisionamos nossos dias, nossas vidas, nossa essência em diminutos vasos, em diminutas expansões, em diminutas expectativas… Em diminuta existência.
Mas a existência de Van Gogh não foi grandiosa? Sim, deveras, mas ninguém disse isso a ele. Ele não sabia – sua vida in vitro era murcha. Sua razão de ser pairava no limbo da ressonância psicossocial. Com isso,os doze girassóis, doze, após doze, se fatigaram cedo demais.
Assim, Van Gogh não quis esperar o envelhecer dos vincos de sua face e, embora soubesse que o vaso onde ele se guardava era cheio de rachaduras atemporais, ousou, então, a coragem daqueles que decidem morrer e espatifou o próprio vaso com violência – numa belíssima noite de inverno neerlandês.
Que pena! Van Gogh não precisava viver num vaso, afinal, alguns dos jardins mais bonitos do mundo estão na Holanda. Afinal, o sopro da criação Divina passeia por todos os jardins, fazendo respirar os girassóis. Todos eles, até mesmo os que já foram colhidos, pois quem disse que não há vida após a morte, não sabe que é um vaso: vestido para girassóis.
Nota da CONTI outra: o texto acima foi reproduzido com a autorização da autora.
Nome que vem conquistando espaço e respeito no cenário das letras brasileiras, é uma escritora goiana de perspicácia ímpar na construção de personagens e na descrição das sutilezas da alma.
É autora de sete livros, dentre eles, “Sofia Búlgara e Tabuleiro da Morte” e “Alétheia”, publicado em 2008 pela Editora Kelps.
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