Há um texto de Martha Medeiros que gosto muito, intitulado “Meu herói, meu bandido”, que diz que quando crescemos, encaramos uma duríssima travessia, chamada de “cair na real”. É quando começamos a enxergar nosso pai, antes gigante, do nosso tamanho. Com a maturidade, as proporções ganham sentido e clareza. E descobrimos que ninguém é herói, ninguém é bandido. Ele é um homem, e, com a percepção correta, passamos a visualizar sua humanidade.

Esse texto me faz lembrar o final da letra de “Pais e Filhos”, em que Renato Russo canta lindamente: “Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo; são crianças como você, o que você vai ser quando você crescer”.

Durante muito tempo não compreendi meu pai. Durante boa parte de nossa convivência diária, o enxerguei diferente do que ele realmente era. Desperdicei muitos momentos tendo medo de suas reações, assustada com suas inconstâncias, ansiosa perante seu silêncio, receosa de estar incomodando, apavorada com a possibilidade de provocar nele uma resposta ríspida ou passional.

Demorei bastante tempo para amadurecer e começar a enxergar em meu pai sua humanidade. Para começar a entender que ele não era diferente de mim, e carregava dentro dele os mesmos sentimentos de inadequação, insegurança, bondade, tristeza, felicidade, raiva e amor que eu mesma carregava. Ele não era herói nem bandido, como disse Martha Medeiros, mas era um homem tentando ser pai, além das outras inúmeras funções que acumulava.

Meu pai nem sempre acertava, nem sempre falhava, mas talvez meu olhar sobre ele tivesse um peso e uma cobrança maiores que o comum.

Antes de “cairmos na real”, idealizamos muito. Projetamos aquilo que acreditamos ser o ideal e desejamos silenciosamente que os objetos de nosso afeto cumpram o combinado. Quando não cumprem, nos frustramos, nos fechamos, nos afastamos. Como a letra de Renato Russo, começamos a culpar nossos pais por tudo. Felizmente, crescemos. E com a cabeça no lugar, começamos a perceber que, independente deles terem acertado ou falhado, já passou. Daqui pra frente, cabe a nós fazermos o melhor que pudermos por nós mesmos.

O tempo voa. Num dia somos filhos, no outro somos pais. De repente tudo se funde e nos surpreendemos entendendo nossos velhos. Compreendendo os gestos de preocupação, limite e até descontrole. Repetindo as exigências, regras e imposições. Percebendo que eram meninos como nós, e se esforçavam para serem provedores de afeto e segurança mesmo quando eram assolados por medos e insatisfações. Vamos descobrindo que nem tudo foi perfeito, mas começamos a perdoar.

É preciso perdoar nossos pais. É preciso cair na real e entender que, ao idealizar a paternidade e o amor de um pai, acabamos desejando objetivos inatingíveis. É preciso amadurecer a ponto de compreender que os traumas familiares não começaram com você, e que se algo lhe incomodou muito como filho, cabe a você perdoar seu pai para que a história não se repita nem se perpetue nas gerações vindouras.

Crescer talvez seja o momento em que passamos a acomodar nossos anseios e exigências sob um teto de realidade e possibilidade. Vamos descobrindo que haverá dias em que as coisas não serão como desejamos, elas serão como são, e tudo bem. Diminuindo as expectativas e aumentando a capacidade de perdoar aprendemos que a vida é mesmo limitada, e está tudo certo também. Somos imperfeitos, as pessoas que amamos falham, nem sempre nossas expectativas são correspondidas. E, depois de cair, a gente tem que se levantar, mesmo que não haja ninguém para nos ajudar.

Meu pai chorou na minha formatura feito menino. Eu tinha vinte e um anos, e por isso me surpreendi. Hoje, mais amadurecida e enxergando nele sua humanidade, percebo que sua emoção era genuína e repleta de significados. Pois por trás da aparente fragilidade, ele me mostrava que minha formatura o aproximava da formatura e da juventude dele. Imagino que naquele instante os dois momentos se fundiram, e ele reviveu através de mim, sua própria história. Suponho que o mesmo ocorrerá comigo, quando meu filho se formar ou se casar. Somos todos linhas do mesmo novelo, e reconhecer que carregamos um legado tanto de falhas e imperfeições quanto de amor e coragem, nos ajuda a ventilar as feridas e aceitar a fragilidade e limitação das coisas e das pessoas… Feliz Dia dos pais!

Fabíola Simões

Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.

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