Imagem de capa: nuvolanevicata/shutterstock
Para que serve a utopia? Serve para isto: para que não deixemos de caminhar. Para que o mundo seja o lugar de muitos, e não somente, o lugar de poucos.
A utopia foi privatizada, definiu Zygmunt Bauman pouco antes da sua morte. Para o sociólogo, na modernidade líquida não existe, como houvera há 50 anos, por exemplo, o sonho conjunto da busca de uma sociedade melhor, onde todos possam ter o seu lugar ao sol. O que há é a tentativa individual de melhores condições de vida ante uma sociedade cheia de problemas em que a vida coletiva se dá de modo quase que insustentável. Ou seja:
“A utopia privatizada não é sobre uma sociedade melhor, mas sobre indivíduos melhores, cada um em suas situações individuais, dentro de uma sociedade muito ruim. Sobre a sociedade, dizem que não dá para mudar.”
Se olharmos para a história, de fato, acreditaremos que não há como mudar, porque as utopias fracassaram. Os sonhos e tentativas de construir um mundo melhor – que não poderia ser deixado para depois, deveria ser feito urgentemente – sucumbiram, seja pelas próprias pernas, seja pela ação de pernas “amigas”.
Mas entre erros e acertos, a benevolência de uns e a prepotência de outros, a utopia como a luz da esperança permanece, mesmo que no imaginário de poucos. Entretanto, se ela se mostrou falha e reside em tão poucos pensamentos, para que ainda serve a utopia?
A despeito disso, Eduardo Galeano, lembrando as palavras do cineasta Fernando Birri, respondeu: “Serve para que não deixemos de caminhar”. Dessa maneira, devemos considerar que sem a utopia, as sociedades, os povos e as pessoas deixam de caminhar, de sonhar, de acreditar em algo que ainda não existe e, assim, passam a se conformar com a situação tal como ela é – imutável – sobretudo para o coletivo que habitamos.
Esse conformismo diante do status quo é responsável por fazer com que a ordem seja cada vez mais estabelecida, respeitada e, em alguns casos mais “perturbadores”, até cultuada. Mas que status é esse? É a (des)ordem no qual o mundo se encontra, em que há a paradoxalidade de muitos terem tão pouco, enquanto tão poucos têm muito. Um mundo em que pessoas fazem dieta, ao passo que outras morrem de fome. A (des)ordem da indiferença, do descaso com o próximo, consigo, com o homem. Um mundo de pessoas que aprendem a acumular, mas jamais a compartilhar (a não ser que seja algo no Facebook).
A (des)ordem que segrega, separa, cria muros invisíveis e outros de concreto. Um mundo em que capitais cruzam os oceanos na primeira classe, e pessoas morrem ao tentar atravessá-los em botes. A (des)ordem que humaniza máquinas e despersonaliza pessoas. Um mundo de almas adoecidas que circulam como fantasmas solitários em meio às multidões.
E diante dessa “ordem” não há o que fazer? Não se deve resgatar o princípio da utopia? Devemos somente aceitá-la porque ela é expert em produzir riqueza? Entretanto, de que adianta uma fornada de pão se apenas um homem pode se sentar à mesa?
A utopia foi privatizada, todavia, ela precisa ser recuperada. É necessário sonhar individualmente, mas o coletivo também precisa desfrutar de sonhos conjuntos. E isso não precisa acontecer em um plano de mundo socialista, já que a história nos mostrou mais de uma vez, que entre o ideal e a práxis, sempre haverá a inconciliável ambição humana.
Por isso a utopia não conduzirá a um mundo perfeito, e sim, a um mundo melhor, com falhas e dificuldades, certamente, mas com o horizonte sempre à vista e jamais apagado, como acontece em nossos tempos.
Que o capitalismo não será perfeito, todos nós sabemos. Que ele produz riqueza mais do qualquer outro sistema conseguiu, também sabemos. Que não há possibilidade de sistemas perfeitos, a história nos ensinou. No entanto, dar um caráter humano a um modelo destrutivo, que a cada dia destrói ainda mais o que resta de gente em nós, é a utopia urgente e necessária ao nosso mundo. É preciso acender as luzes, porque o horizonte está escurecido e, como disse Galeano, precisamos continuar caminhando, por mais que a cada passo, o horizonte se torne mais distante.
Contudo, podem indagar que de nada adianta caminhar sem chegar a um destino, mas tampouco adianta ficar parado e cair no abismo. Entre ter o conforto da escuridão, prefiro acreditar que as estrelas, que brilham no horizonte, vem nos visitar em forma de vaga-lumes para nos mostrar que embora distantes, elas anseiam pelo nosso toque, afinal, como dizem os sábios – “Somos todos poeira estelar”. Que seja essa, então, a nossa utopia: um mundo não perfeito, não no céu, mas iluminado em sua completude pelo brilho celeste das estrelas.
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