Por Paula Peregrina
O artista assume seu lado obscuro, suas cores de contrastes inadequados, e só por isso pode manipulá-las criando novas composições. Dessas fraquezas e inadequações que todos temos, desse lado obscuro do qual nos ensinam a fugir, caso assumíssemos, caso questionássemos tudo o que sempre nos disseram que deveríamos ser, poderíamos.
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Não há estudo científico necessário para identificar um artista. Ele ali, em meio a multidão, não precisa estar munido de seus quadros, nem ter ao colo um caderno aberto para anotação de suas ideias ou de seus poemas, não precisa estar fantasiado de palhaço ou com sapatilhas de dançarino, nem carregando um instrumento musical nas costas ou placa que advirta: “Sou artista!”. Ele estará lá, absorto – se sentindo incomodamente comum e diferente, ao mesmo tempo deslocado e íntimo de todos os lugares do mundo. Sua expressão, das linhas que se manifestam na face às roupas que combinam em seu corpo como uma mensagem para o meio, dizem da sua natureza irremediavelmente criativa, sonhadora, soturna e alegre ao ponto da extravagância.
Não surpreende que a vida pessoal dos artistas interesse tanto às pessoas. Artista não é apenas aquele que reproduz técnicas no ateliê, que grava em estúdios, que toca em concertos, que dança em palcos, que atua em frente à câmara, que escreve meticulosamente em frente ao computador ou à máquina de escrever. A mão, o corpo, a mente, todas suas articulações e indomáveis instrumentos articulatórios, das sinapses no interior do corpo às incógnitas da alma, artista não é sequer quem tem obra reconhecida, quem é conhecido, mas é sempre reconhecido, seja pelos anônimos de um beco qualquer ou por um veículo de comunicação com função preestabelecida. Olham para ele e sabem. O escutam e sabem. Sua história é narrada por seus passos, por seus olhos, por seus abraços, pela presença e pela ausência de laços. Pela inquietação. Artista é aquele que funde a arte na vida, e por isso essa vida interessa tanto.
O artista é ingênuo, crédulo, aberto, sonhador e paradoxal, por ser também soturno, cético, cheio de regras incongruentes, desiludido. Vê possibilidade em tudo, vê arte emanando do interior das coisas mais repugnantes. Enxerga e revela as desconfortáveis potencialidades dos seres mais conformados: você pode ser, se quiser! Mas, se não quiser também, o problema é seu…
Porque assim ele vive a vida, como obra de arte, é que se faz artista, e não o contrário. E se para a produção da obra artística, essa oriunda das técnicas artesanais, ele imprescinde de conhecimento, não o é assim para tudo o mais? E se pudéssemos burlar todas as regras que nos enquadram entre padrões cinzentos e apagados ou vibrantes cores monocromáticas que contam falácias sobre um poder vazio, e nos tornássemos artistas da vida? A simplicidade disso é tão absurda que constrange, e tão perigosa que acovarda. É que como podemos ver em “Os Sonhadores”*, os personagens podem nos levar dos extremos do deleite à perdição das tragédias. E o que é isso, se não viver?
Que maravilhoso seria, olhar-se no espelho com o rosto amarrotado pelo travesseiro, atordoado pelo pesadelo, pela insônia ou pelo sonho confuso, e poder pintá-lo não segundo o que diz o catálogo de dicas de maquiagem, mas segundo o nosso desejo de expressão. Que libertação combinar os cortes, cores e panos das roupas segundo nosso próprio desejo, e não segundo as arbitrariedades dos “gurus da moda”, para dizermos através dos retalhos trabalhados sobre a nossa condição. Moda-arte, dá voz a escolha e não à etiqueta. Escolheríamos nossos objetos, os inventaríamos, criaríamos, modificaríamos e transformaríamos em parte do nosso cenário, do nosso figurino, do nosso conceito de si. E ainda, trabalharíamos a palavra para além das convenções, dos jargões do momento ou da polidez das normas, cantaríamos frases, desverbalizaríamos sentidos, pintaríamos com a boca, cantaríamos com a mão, escreveríamos com os olhos.
Nos tornaríamos subversivos, incômodos, incabíveis, contradizendo os limites do humano que faz de fora e para fora, fazendo de dentro para dentro, e fora o corpo revelando a alma, o que mais importa? Desmentiríamos as advertências que destruíram a juventude dos nossos avós, e a vaidade mórbida que tenta desvitalizar a adolescência até que ela se torne uma ignóbil caricatura da chama criativa, apaixonada, rebelde e, por isso, corajosa e desmiolada, capaz de mover montanhas simplesmente pela inocência em acreditar que pode fazê-lo.
Denunciaríamos o equívoco dos rótulos supostamente doados, mas que custam mais caro que a vida, nos embriagando “Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher”**. Nossas fumaças com poderes surrealistas – de cigarros, incensos, fogueiras ou do pensamento que se incendeia -; nos proporcionariam diálogos com Baudelaire, com Rimbaud, com John Lennon ou com nossa falecida avó, que agora na morte podendo enxergar além diria: está tudo bem, porque no fim, a vida é o que importa, e a vida não é longevidade mas o que fazemos dela enquanto a temos. A vida é um fim. Passados os tempos da embriaguez de sempre, daríamos espaço para sobriedade enlouquecida produzindo o novo e o vivo onde quer que estivéssemos: todo escritório, todo consultório, todo balcão de venda, toda sala de aula seria viva, potente, vibrante!
Sobrevivendo para contar história tanto ou mais do que antes, e mais que isso: vivendo, poderíamos sentir a alegria de estarmos fazendo exatamente o que estamos fazendo, e ficaríamos ainda mais alegres de vermos o outro fazendo exatamente o que ele está fazendo – teríamos a consciência empática da importância de toda e qualquer atividade, e toda e qualquer atividade seria criativa, por ser feita por uma pessoa que libertou sua criatividade para fruir em cada gesto seu, logo, o homem gari estaria varrendo criativamente a rua, e os sons da sua vassoura roçando e transformando o chão corrompido em espaço limpo, deixando aqui e a ali uma folha para nos lembrar da lamentação e renovação constante das árvores, seria artista: veríamos a arte das coisas simples. Ele sorriria para nós, nós sorriríamos para ele, seríamos todos cúmplices.
Poderíamos correr pela rua quanto tivéssemos vontade, sem preocupações sobre nos considerarem loucos e disso vir a difamação: seríamos todos assumidamente loucos, com o orgulho infantil de quem entende instintivamente não ser a loucura uma doença, mas a doença uma possibilidade tanto da loucura quanto da pretensa normalidade. Dançaríamos na chuva, apaixonados pela vida, sentindo-nos abençoados pelas maravilhas diárias que ela nos traz e que antes ignorávamos pela banalização: agradeceríamos as pesadas nuvens enegrecidas pelo banho nosso de cada dia, pelos rios correndo, pelas belas cachoeiras, pelas ondas do mar que por vezes adotam surfistas em seu seio, pelo líquido essencial que bebemos e nos dá movimento ao corpo, pelo frescor, pelas canções deliciosas compostas por todas as manifestações da água no mundo.
Olharíamos as flores, até mesmo os capins resistentes que nascem rompendo os meios-fios, recitando poesias sobre a resistência e o desejo de existir, ainda que comum, beleza singela de folhas brancas e delicadas, rodeando a porosa rodela amarela que deseja miniaturizar uma simbologia do sol.
Extasiados, entusiasmados, envolvidos com o mundo, nos sentiríamos acolhidos para mergulhar em nossas dores, paixões e delicadezas, para insuflar alegrias ou experimentar prazeres. Fossemos todos artistas, não nos contentaríamos em contemplar o fantasma da vida daqueles que se fizeram enquanto obra de arte, e disso produziram obras: nos interessaríamos pela própria vida, e como obra mínima teríamos a existência – existiríamos todos como obra de arte.
*Referência ao filme “Os Sonhadores” de Bernardo Bertolucci.
** Referência à prosa poética de Charles Baudelaire
A reprodução no CONTI outra foi autorizada pela autora.
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