Por esses tempos anda tudo dividido entre o certo e o errado. Claro ou escuro, bonito ou feio, homem ou mulher… Tolerância é palavra gasta de fala e rasa de uso… Fico de cá pensando nas nuances de cinza, que existem infinitas entre o preto e o branco. Seja na fumaça que polui o céu, ou no charme dos cabelos… dos homens. É. Porque até isso, de certa forma, ou de todas, é negado às mulheres.
Não sou dada a ficar discutindo o sexo das cãs ou o perfil das anciãs. Sempre acho que se os disparates são absurdos, não se deve lhes dar a satisfação do olhar ou relevo da atenção. Mas tem coisa que é tão fortemente acintosa que traz o sangue pros olhos ou dá vontade de rir. Além do quê advogo em causa própria visto que, de vez em quando, me mandam pintar os fios brancos…
Homem pode ter ruga no rosto e prata nos cabelos. Tem direito a envelhecimento digno, atraente e reconhecido. A mulher não… (E digo isso com o olhar seco, em tom de constatação fria, sem partido, que obviamente, menina antiga e inconformada que sou, tomarei mais tarde.) E porquê?
Porque mulher tem que estar sempre a postos. Cheirosa. E preparada. E depilada. E tantas outras coisitas sedutoras más, que haja amor próprio pra dar conta. Não que isso tudo não seja bom e faça bem à imagem que aparecerá sorrindo do espelho. O que é de gosto é regalo de toda a vida que se move dentro do peito. Mas a partir do momento que se estabelece a obrigação de um padrão do qual não se pode fugir, aí a conversa tem que tomar outro rumo.
Juntando essas pontas, me vem um filme que fala do empoderamento feminino bem antes do termo ganhar entendimento, voz ou tomar posse dos direitos: A excêntrica família de Antônia. Ali o universo das mulheres é tratado não como bandeiras a serem agitadas ou camufladas, mas com uma identidade genuína, onde situações que são mais fruto das contingências do que das escolhas, ganham contorno pela postura que se toma diante delas. Retratos e histórias, que embora pareçam ter um colorido excessivo, fazem pensar … e muito. Quantas vezes o entorno dita a regra e aponta o dedo… acua quem não se molda. E por mais que a personalidade seja forte e o caráter seja liso, é preciso ser macio pra envergar e não quebrar. E ter resiliência, que é a capacidade de voltar a forma original, para o quando de levantar.
Mais do que tratar de crenças ou certezas, o que é mostrado de forma bem clara nesse filme é que a liberdade das escolhas está diretamente ligada aos gritos de independência proclamados durante a vida. E que as pequenas permissões que nos damos no dia a dia é que vão contar na construção de um ser liberto de fato e farto de afeto, com menos travas e dogmas e culpas. Eu quero… mas eu só posso na medida em que sou autor das minhas possibilidades e me entendo refém das consequências. Nem sempre dá pra saber o que espera depois da curva da esquina, mas com muito modo e pouco siso a gente pode se preparar pra qualquer aventura.
Já foi dito e redito que fazer coisas fora do horário, da agenda e do esperado podem trazer um bem ao ego, à saúde e ao coração. Se orgulhar da própria ousadia é sensação única! Claro que sem a conta dos parâmetros, pois o trivial de um é o transgressor do outro. Dentro das audácias e dos limites individuais há que se permitir. Sempre. Seja uma bola de sorvete de chocolate, uma tatuagem escondidinha na nuca ou assumida no tornozelo, um cinema ou um namoro no meio de uma tarde de terça-feira ou… um simples fio de cabelo branco. Às vezes não se enquadrar é bom… até na gente mesmo.
::: De 1995 e da diretora holandesa Marleen Gorris, A excêntrica família de Antonia, derrotou o nosso “O Quatrilho”, e levou o Oscar. Esse talvez seja o único ponto indigesto, para um brasileiro, de um belo filme que trata do feminino e das várias questões que o permeiam. A independência, a força de trabalho, o abuso sexual, a inserção em uma sociedade machista e patriarcal, o homossexualismo, o aborto ou o direito à decisão de ser mãe são alguns pontos bem abordados. Por esses caminhos passeia Antônia, mulher forte de lida e larga de atitude que vai agregando por bem querer e olhar doce, alguns desencaixados no mundo… um desfile de personagens caricatos na medida de refletir as desproporções da própria vida. Vale cada minuto. E até engolir o orgulho.:::
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