Toda viagem é transição, promove mudanças, amplia olhares e exige adaptações.
No último final de semana, a minha sobrinha e eu tomamos um desses caminhos que nos tira de nossos quintais rotineiros. Saímos da minha cidade, que fica no interior do Estado, e fomos até a capital, a cerca de 120 km, e, para isso, utilizando o transporte público.
Foram dias culturais e amorosos junto a pessoas queridas e em lugares desejados. Na volta, entretanto, não conseguimos passagens para que nos sentássemos uma ao lado da outra.
Eu nem me preocupei, pois minha sobrinha já tem 14 anos, entretanto, achei que simplesmente pedir a pessoa da poltrona do lado seria o suficiente para que ela trocasse de lugar comigo e eu pudesse viajar lado a lado com minha acompanhante. Mas, para minha surpresa, as duas pessoas a quem pedi a inversão de lugares (uma fileira para trás ou para frente no lado oposto do ônibus) negaram imediatamente e ainda demonstraram leve ansiedade e desconforto por eu lhes direcionar a pergunta.
Tenho plena consciência de que elas não tinham nenhuma obrigação de ceder seus lugares e trocar comigo, mas, tendo em vista que eram pessoas que viajavam sozinhas, pensei que isso não seria nada além de uma pequena gentileza. Eu estava enganada.
Enquanto voltava para casa, separada da minha sobrinha, me lembrei de onde conhecia a primeira senhora que negou o pedido. Ela foi minha esteticista na adolescência e lembrei-me do seu profissionalismo e bom tratamento enquanto fui sua cliente.
A outra pessoa a quem pedi a troca de lugares estava sentada ao meu lado e, depois de um tempo, trocou algumas palavras educadas comigo, mostrou-se simpática e contou que ia até uma cidade vizinha da minha prestar um concurso. Eu subentendi que era um jovem médico.
Ficou claro que as duas pessoas que se negaram a trocar de poltrona não eram pessoas grosseiras, tinham formação e lidavam constantemente com o público.
Não diferente aconteceu quando viajei, juntamente com uma amiga, para o exterior e, para economizar, ficamos em um albergue em Praga. Como essa amiga, na verdade amiga da minha mãe, já tinha mais de 60 anos, ela pediu para a pessoa trocar de lugar no beliche com ela para que pudesse ficar na parte de baixo. Na ocasião, a pessoa que estava com a cama de baixo também negou o pedido.
É claro que esses “nãos” podem ser decorrentes de um motivo maior e pessoal, mas parece que em situações assim, essas que chegam a chamar a nossa atenção, o “não” vem seco e sem justificativa, dando a impressão de que a negativa não vai além da falta de interesse em ajudar.
E, se isso acontece com questões pequenas como essas, situações em que a ação envolvia mais uma gentileza do que uma real necessidade, o que acontece quando os pedidos partem de pessoas socialmente excluídas e que precisam do nosso olhar e de ações de verdadeira solidariedade?
Penso em alguns fatores…
Educação não se vende.
Uma das melhores definições de aprendizagem que conheço fala que a aprendizagem significa mudança de comportamento. Só aprendemos realmente quando entendemos que evoluir é fruto de mudanças e adaptações constantes e que envolvem empatia, flexibilidade e atenção.
Respeito não se compra.
Para educar é preciso humildade inclusive para entender que o tempo e a história do outro são diferentes da nossa. A polidez cultural só é verdadeira se vier acompanhada da polidez moral e social. Não se trata alguém bem apenas por que essa pessoa é nossa cliente e nos paga ou depois que vemos que ela tem cultura, por exemplo. Há que se ter atenção para as necessidades dos que estão próximos, há que se dizer um não, quando necessário, mas, um não que vá além do egoísmo e da falta de consideração.
Gentileza não se força.
A principal característica da gentileza é que ela acontece sem nenhuma obrigatoriedade. São a não obrigatoriedade e a espontaneidade dos atos gentis que os tornam nobres. Toda gentileza é ato de doação, é respeito pelo outro, é conhecimento em execução.
A não gentileza das pessoas que descrevi, embora fosse algo quase banal durante o dia, me chamou tanto a atenção porque escrevi recentemente um texto sobre a temática da gentileza que já ultrapassou 180.000 compartilhamentos.
Apesar do interesse pelo tema, na prática, as pessoas parecem assustadas umas com as outras. É como se tivessem medo de dar e de receber, pois são exatamente esses dois atos que definem as relações humanas, cada vez mais raras e distantes.
O Dr. Flávio Gikovate, quando descreve “pessoas egoístas”, diz que algumas delas não gostam de receber porque se sentem na obrigação de retribuir. E, a meu ver, nesses casos a pessoa prefere nem ganhar a ter que dar algo em troca.
Esse texto não será viral como o outro, pois, ele não fala da “beleza da gentileza” e sim dos atos de gentileza que nos faltam, da reflexão que poderia nos educar e alimentar mudanças.
Sem mudanças, morre a chance da verdadeira gratidão, a que vem do aprender com afeto e sensibilidade sobre os relacionamentos humanos.
E, ao contrário do que muitos pensam, a essência do homem, aquela que será a base para grandes atos, aparece nos detalhes, nas sutilezas, nos gestos mais simples de cortesia cotidiana. Os atos verdadeiramente revolucionários são praticados a favor de quem está mais próximo, talvez daqueles que compartilham conosco as poltronas de um ônibus, dos ilustres desconhecidos a quem tivermos a ousadia de amar.
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