Por Clara Baccarin
Desde muito cedo na vida aprendemos o nosso nome.
Descobrimos que somos menina ou menino, que gostamos de boneca ou de carrinho, que usamos vestido ou bermuda. Nós vamos aprendendo a vestir os nomes que nos são dados e os nossos gostos e hábitos, assim como vamos aprendendo a pentear os cabelos e a calçar os sapatos.
Aprendemos, desde muito cedo, a nos definir e essas definições vêm do mundo, vêm primeiramente dos olhos alheios. Nós recebemos nomes como se fossem títulos, assegurando-nos um tipo, um modelo dos já existentes e catalogados no mundo.
Nos dão um espaço estabelecido no arquivo que registra as personalidades.
Esses nomes e modelos nos servem de guia para sabermos quem somos, para nos reconhecermos, e para nos proteger das florestas misteriosas do mundo e nos colocar num seguro trilho.
Trilhos tem ponto de partida e ponto de chegada, tem mapas, não tem susto, o caminho já é conhecido e por isso garantido. Nossa família, que nos ama tanto, faz questão de assegurar que nos deu atributos o bastante para entrarmos no trilho e seguirmos sozinhos. Então o coração dos pais pode acalmar: serviço cumprido! O filho segue em viagem calma e bem sinalizada.
A viagem pelo trilho é tão macia, fácil, o trem segue no automático, tudo o que nos é familiar segue no mesmo trilho, e nós só temos que nos deixar levar, e manter nossa identidade à mão, saber quem somos pelos nomes e modelos que fomos recebendo desde que nascemos.
Acontece de em algumas fases da vida, algo dentro de nós nos incomodar e então decidimos que precisamos agregar outros nomes e modelos à nossa definição de nós mesmos para ver se expandimos nossa experiência.
Tomamos a decisão de mudar de trilho, entrar em um outro que segue por caminhos mais ‘iluminados’ ou interessantes e que nos dão outras visões de mundo. Então nossos nomes vão crescendo, agora temos estilo, gostos diferentes, somamos experiências, somamos livros na estante, títulos de pós-graduação, amigos no facebook e viagens pelo mundo. Nos tornamos uma pessoa grande, enorme, cheia de nomes e qualidades.
Nós aprendemos a seguir um trilho, nós aprendemos a mudar de trilho, nós aprendemos a enfeitar nossos trilhos e a congregar novos valores a eles, mas nós nunca aprendemos a sair dos trilhos, a mudar verdadeiramente.
Nós não exploramos a nós mesmos debaixo desse monte de entulho de nomes. O que passamos a ser é uma casca, rasa. Somos o que nos define, somos um estereótipo, somos uma máscara pré-moldada de modelo antigo e já não sabemos quem somos sem ela, e já ne sabemos como tira-la.
Nós nunca mudamos verdadeiramente até tirarmos as máscaras e sairmos dos trilhos e entrarmos no nosso desconhecido familiar ou na origem de nós mesmos.
Mas, para que faríamos isso? Para que quebrar uma bonita máscara? Para que romper o caminho comodista?
Eu não sei por que, e não sei para quê.
Só sei que viver assim, sem nunca sair do trilho, parece um viver de quem só fica nas margens das próprias possibilidades, só vive uma vida emprestada, rotulada e trivial. Viver assim me parece um esquecimento de si mesmo.
Há uma criatividade imanente querendo explodir. Há uma alma inquieta, aventureira, que quer vasculhar-se, que sempre se enamorou mais das visões das janelas dos trens que enquadravam as inúmeras possibilidades de ser lá fora.
Há uma criatividade que quer transbordar e quebrar as molduras de qualquer nome e ir além (ou aquém) de qualquer formato pré-estabelecido, que seja político, religioso, intelectual…
Há uma vontade de respirar e fazer da vida um desentulhar e um desatar de laços e trilhos e nomes.
Há uma vontade de ver o mundo sem juízo de valores, de ouvir o silêncio que surge da mente vazia de quem já não briga consigo mesmo porque não conquistou mais títulos e pedaços de papel.
Há uma vontade de aliviar a si mesmo do peso de tantos rótulos e se permitir se definir com tudo que há no mundo, desde o que já foi registrado até o que ainda nem tem nome.
Estereótipos delimitam a vastidão da alma humana.
Todos nós somos rios represados, que já não sabem mais correr e abrir caminhos, livres.
A criatividade me libertou um pouco. O pensamento criativo me fez querer reinventar a vida de forma inaugural. E me fez finalmente aceitar que não, eu não tenho que escolher um nome, um lado, um polo, um partido.
Sou louca e santa, joio e trigo, isso e aquilo, tudo e nada. Eu danço conforme eu sinto (e de olhos fechados).
Eu não tenho que entrar num trilho. Mas em cada esquina que eu passo, nesse eterno caminho entre a lucidez e a loucura, alguém tem um nome para me dar, um rótulo, daqueles banalizados, captados no primeiro olhar. Daqueles que olham para minha cara de boba e já entendem de que tipo eu sou.
Mas hoje eu só queria dizer que definir é delimitar. E que entre o certo e o errado, eu escolho o caminho inexplorado.
Ou como disse Rumi:
‘Em algum lugar entre o certo e o errado existe um jardim. Te encontro lá.’
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