Domingos Oliveira, falecido no último dia 23 de março, no Rio de Janeiro, era o que se pode chamar de um artista multifacetado. Era ator, diretor, dramaturgo de cinema e teatro, poeta e cineasta. Domingos faleceu aos 82 anos após passar mal em casa. Seu corpo foi enterrado no último sábado, 24, sob aplausos de familiares e amigos emocionados.
Para além do reconhecido grande artista que era, Domingos Oliveira era alguém dotado de grande espírito e de uma alma muito sensível, e a prova disso são as palavras escritas por ele em duas cartas-testamento endereçadas à esposa, a atriz e roteirista Priscila Rozembaum, e à filha, a escritora e atriz Maria Mariana. As cartas, redigidas em 1998 e recuperadas pelo próprio autor há três meses, foram lidas durante o velório do artista. Em palavras que exprimem bom humor e extrema sensibilidade, Domingos Oliveira se despediu da esposa e da filha da maneira mais poética possível.
Confira, na íntegra, as cartas-despedida escritas por Domingos de Oliveira:
“Meu grande amor. Não fica triste. Nunca te amei apenas. Foi uma paixão. Uma paixão maior que o mundo, que a vida ou a morte. Busquei um momento legal para te escrever esta carta, amor da minha vida. Leia isso sem tristeza porque a hora é de falar sério. Sem tristeza. Eu estou morto, e daí? Estou eu aí nesse caixão e não existo mais. E daí??? É um começo, não é um fim. A vida é sempre um começo.
E eu te peço, meu serafim, meu querubim, eu te peço com a autoridade de quem já morreu: não sofra, não sofra, não sofra. Como? Assim, pensando que a vida sempre existiu e continuará a existir sem o Domingo. Domingos morreu, e daí? Meu amor por você, toda a maravilha que vivemos juntos, isto não morrerá jamais. Eu sempre soube que ia morrer, querida. De verdade. Agora aconteceu, é só isso. Não foi surpresa. E há muito que eu não considerava sequer uma injustiça. Reclamava, fazia charme, mas aceitava. Há hora para tudo. É duro, mas é natural.
Se eu morri bem, sem dor, alegre-se com isso. Se tive que passar por sofrimentos grandes, tenha pena de mim, mas não tanta. Você sabe, sempre fui bom para aguentar essas coisas. E, como toda dor, passou.
Precisei lhe escrever essa carta, paixão, embora tenha medo que você sofra com ela. Mais do que você já está sofrendo. Porém sei que isso não existe. Mas, precisei escrever para te dizer as coisas mais importantes. Confiando na autoridade da morte. Tenho esperança de ser ouvido.
O mundo sempre existiu sem mim, Pri. E vai continuar existindo. Cheio de belezas e potencialidades. Sempre fomos radicalmente a favor da vida, e você deve continuar assim. Você tem de continuar assim. Pensar, por duro que isso seja, que há bem em todo mal. E meu corpo já estava mesmo ruinzinho, e que eu não merecia isso.
Lutei tudo que pude para viver, estar do lado da vida. Mas tudo tem suas vantagens, descansei. Há vantagem no fato de eu ter morrido. Por mais revoltante que isso pareça, mas há. Nada comparado com a tua dor, nem a falta que você sentirá de mim. Porém, ainda assim, vantagens.
Quantos lados novos seus você descobrirá na sua nova vida? E você não precisará dedicar a mim. Sim, meu amor, porque você dedicou sua vida a mim. E com que esplendor, com que glória e intensidade.
Te proíbo de pensar, por um traidor instante sequer, que você poderia me ter dado mais do que me deu. Proíbo. Você me deu tudo. O Universo inteiro você me deu. No teu corpo lindo e tua alma admirável.
Você, minha Priscila adorada, é uma pessoa formidável. Pare de fingir, acredite nisso. Por mim, é a hora. Pare querida, creia, nós vivemos um grande e imenso amor.
Todos os sinos dos céus tocaram a nossa passagem. Embora, em um momento ou outro, difícil. Agora é chegada a hora de você viver sem mim, procurando a mesma glória e o mesmo esplendor. Um outro amor? Sim, por que não? Ame outro, logo que puder. Você não me esquecerá nem um pouco por causa disso.
Ame. O amor é a saída, eu sei. E tente ter o filho que comigo você não pôde ter. Ou adote. Adote! Olha, levo apenas essa mágoa do mundo: de não ter tido esse filho. Mas você sabe disso, se arrependimento matasse… Mas tudo isso é meio bobagem, não é? Bobagens para matar as saudades.
Eu poderia ficar te escrevendo assim uma outra vida inteira. Porque ninguém no mundo foi mais lindo que você. É mais lindo que você. Nem fica bem um morto ficar dizendo certas coisas.
Eu queria muito estar aí, isso sim, querida do coração, te consolando. Junto contigo, dessa carta estranha e desse caixão ridículo.
Quis também te escrever essa carta para que você percebesse o quanto eu estava preparado para morrer. Eu sabia de tudo, estava pronto. Não acho tão terrível assim o quadro que você está vendo agora na sua frente. É assim, pronto, sempre foi assim. Devem haver razões para ser assim. E o amanhecer horrível dos velórios é, ainda assim, o raiar de um novo dia.
Aceite um conselho: saia e leve todos os amigos para tomar um café lá em casa. Você tem muitos bons amigos, excelentes. Você está cercada de amigos sinceros que, agora você vai ver com clareza, não são meus amigos apenas. São seus. Não tenha medo da solidão. Para pessoas boas e generosas como você a solidão nunca existirá.
Leve todos os amigos lá para casa. Ponha uma música na vitrola. Peça a Célia para preparar umas comidas deliciosas que só ela sabe fazer. Umas coisas especiais. E o resto você pede pelo telefone. Botem uma música na vitrola. Chorem por mim até secar as lágrimas. E também riam, um pouco, em minha homenagem, da primeira coisa engraçada que acontecer. Porque logo acontecerá qualquer coisa engraçada.
E Mariana… nunca se separe dela. Abrace ela firme, apertado, sem lágrimas. Ela não parece, mas precisa essencialmente de você.
Agora que eu morri isto é claríssimo. Porque você é forte Pri. Nós precisamos da sua força. Mariana precisa da sua força, da sua amizade, da sua beleza e da sua luz. Fique com ela. Com vocês duas juntas, sempre juntas, eu estarei vivo. No dia em que vocês se separarem, morrerei.
Um detalhe: vai na Barra, mete a mão naquele cofre, e não dê tudo pra ela. Se é que sobrou algum. Fique com metade, é esse meu desejo. Conforme reza a tradição, obedeça. E não permita que ela sofra por mim. Vocês não podem sofrer. Hoje, e só e pronto. Amanhã? Não, é outro dia.
Quando amanhã minha lembrança vier ao seu pensamento, expulse-a com rigor, como se fosse uma indecência. De amanhã em diante você começará a viver a maior das aventuras: a vida sem mim! Sei que vou fazer falta e que fui um tremendo animador de festas. Não faz mal, agora você anima sua própria festa. Você também é boa disso, embora tente esconder.
Creia, te amei loucamente, e sigo te amando, de alguma forma desconhecida. Nunca acredite, mas se houver alguma vida depois, tenha certeza, serei o seu anjo da guarda. Você foi a melhor coisa que me aconteceu, de todas as coisas a maior, a mais grandiosa. Ninguém foi tão feliz quanto eu. Amor, as despedidas, quanto mais curtas, melhores.
“Minha filha Maria Mariana. Que honra ter contribuído para pôr alguém assim no mundo. E agora preciso de você, mais que nunca. Sei o quanto você me ama, e imagino que deve estar sofrendo neste momento, com essa imagem sinistra e um pouco ridícula de eu morto na tua frente, aí dentro deste caixão. Hesitei muito antes de escrever essa carta inoportuna, nesta tentativa de ficar vivo mais um dia.
Não sofra, não sofra, não sofra. O mínimo possível até agora, no enterro, e basta. Quando você sair daí, me esqueça. Eu estarei sempre presente dentro de você, você é a minha continuação neste mundo. Fora isto, tente agressivamente me esquecer. Ou melhor, tente entender, com sua fé e sua juventude, que mundo é esse sem o pai. (…) A vida é uma dádiva, uma aventura gloriosa, que devemos defender às últimas consequências, mesmo em momentos horríveis como este.”
***
*Com informações do jornal “O Globo”.
Imagem de capa: Edison Vara/Pressphoto
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