Era uma vez uma menina que tinha medo do escuro

Dentro de cada uma de nós existe uma menina que tem medo do escuro. Às vezes o escuro está fora, às vezes mora dentro de nós. Nem sempre é causado pela falta de luz. Muitas vezes, inclusive, sentimo-nos ofuscadas pelo excesso de luminosidade que cega. Essa luminosidade excessiva que vem do brilho artificial de modelos impossíveis ou cobranças descabidas.

E, tanto faz se tivermos sido meninas quietinhas, tímidas e obedientes. Ou se a nossas versões infantis tiverem sido encarnadas por garotinhas rebeldes e travessas. Era no silêncio de nossos quartos, quando ficávamos a sós com nossos sonhos e desafios, é que entrávamos em contato com nossas coragens e fraquezas, com nossas estratégias para enfrentar esse mundo que exige tanto de nós e nos protege tão pouco dos inúmeros perigos. As coragens aprendidas na solidão que vem do medo, viram passes de liberdade quando nós as compartilhamos umas com as outras.
Meninas passam a vida cortejando a coragem. Meninas crescem tendo de provar que são fortes, sem perder a doçura; que são inteligentes, sem perder a feminilidade; que são ousadas, sem perder a inocência. Meninas são desafiadas a superar inúmeros obstáculos para alcançar seus objetivos, sempre sendo questionadas, postas à prova, testadas.
Meninas ficam cada vez menos vulneráveis, a cada vez que uma de nós enfrenta e descarta um relacionamento abusivo; a cada vez que uma de nós vence e supera uma barreira aparentemente intransponível de preconceito e subjugo; a cada vez que uma de nós não se rende às circunstâncias e inventa um novo caminho; a cada vez que uma de nós abre espaço para que tenhamos os mesmos direitos à liberdade, à segurança a sermos donas do nosso corpo, do nosso destino e do nosso prazer.
Quanto mais teremos de ser corajosas para refutar os rótulos que insistem em nos impor? O tempo que for necessário, até que todas nós estejamos livres dos medos que aprendemos a engolir, digerir e incorporar. Nenhuma de nós está mais interessada nessa imagem impossível de parceira exemplar, capaz de tolerar toda espécie de afronta ou deslize porque cabe à mulher a harmonia da família. Nenhuma de nós precisa mais de relacionamentos estáveis e respeitáveis para se sentir digna e íntegra. Nenhuma de nós pode mais aceitar essas reduções e limitações, porque em aceitando, estaremos jogando no lixo anos de luta, resistência e enfrentamento para nos garantir o direito de ser mulher, dona de seu nariz, independente e muito feliz, obrigada!
Aquela menininha que mora dentro de nós e que tem o direito, inclusive, de sentir medo, crescerá em coragem, à medida em que formos nos dando conta de que as inúmeras atribuições que teimam em cobrar de nós são escolhas. Temos o direito de escolher ser ou não ser mães; ter ou não ter relacionamentos sérios, divertidos, enrolados, ou seja lá o que for; ficar à vontade com nossos corpos lindamente originais e imperfeitos; acreditar que o amor ou qualquer outra forma de afeto é legítima se nos trouxer alegria.
E um dia, de tanto cortejar a coragem, veremos o medo diminuir, esmaecer, diluir-se em nossos incontáveis mergulhos, e voos e saltos que escolhermos dar em busca de nos encontrarmos ou de nos perdermos. Um dia, o mundo há de compreender que nosso maior desejo é sermos livres para dizer sim, não ou talvez, a depender de nossa vontade, necessidade ou disposição. Porque dentro de nós habitam todas as mulheres do mundo, cada uma com suas histórias e sonhos. Mas, sobretudo, com o peito cheio de orgulho por ter conquistado tantas coragens ao longo da vida, graças a cada pequeno medo que foi acolhido, compreendido e superado.







"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"